domingo, 14 de janeiro de 2018

Onde pecadores vêm brincar

Era perigoso, era lindo, era ancestral, era cru. Não era um dia qualquer e nele não aconteceria uma coisa qualquer. Naquele pôr-de-sol seria celebrado o velho por meio do novo relembrando-se rituais tão velhos quanto o tempo, e o melhor de tudo, testemunhado e vivido entre irmãos e irmãs gêmeos em ofício, amor e espírito.

Uma família reunida no acaso do mesmo pingo de tinta manchando páginas de verso e prosa que um dia estiveram a quilômetros de distância.

Vinho em honra ao convidado mais especial que logo chegaria. Flores e os sons e silêncios do pequeno bosque pontuado aqui e ali por lamparinas que logo seriam acesas por aquela que era muito da causa daquilo tudo e que naquele dia se prestava como Sacerdotisa da cerimônia.

Chegada a hora, quando um determinado raio de sol toca o cálice sobre o altar, começa o cortejo. Meninos, meninas, homens, mulheres cuja idade na verdade pouco importa, de rostos e origens que não poderiam ser mais diferentes. A bela moça não consegue não sorrir ao levantar a cabeça e ver tantos companheiros reunidos para algo tão especial.

N. vinha radiante na selvageria de seu cabelo crespo conduzida pelo braço firme e orgulhoso de A., talvez o membro mais velho daquela irmandade; que por força de hábito enxergava principalmente cada uma daquelas jovens mulheres como suas filhas, das quais cuidar e com que se preocupar. N. sorria para ele de modo a tranquilizá-lo de seu nervosismo e medo de fazer algo que pudesse ser mal-interpretado ou que estragasse o momento.

F., a outra metade do casal, vinha logo atrás, acompanhada por S. que carregava as alianças com alegria e pela moça conhecida como Fishroll em sua promessa de proferir ardente discurso e propôr o brinde final antes da esperada festa. Atrás deles vinha o resto dos membros que puderam comparecer; aos poucos estes se acomodavam em cadeiras dispostas em semi-círculo frente ao pequeno altar.

Sendo abençoadas por L. com incenso e posicionadas no círculo traçado pela mesma com um punhal consagrado, N. e F. ouvem a mesma pedir por atenção, carinho e proteção dos velhos deuses para que sua vida juntas seja feliz, harmoniosa e produtiva e logo depois fazem os votos, com as mãos unidas por uma larga faixa de tecido, de unirem-se amorosamente de todas as formas que os deuses e o destino acharem conveniente.

Após a troca de anéis e a consagração de um pouco de vinho para a terra, Fishroll puxou o grande brinde e salva de palmas, bem como o texto preparado como discurso. Muitos dos que estavam ali já sabiam mais ou menos do que ele trataria, mas mesmo assim mal podiam esperar para ouvir as palavras da boca da poetisa surrealista do grupo. Ela própria se deleitava na pompa e expectativa que aquilo gerava.

A. aproximou-se para dar um beijo no topo das cabeças de N. e F. e depois que o mesmo voltou ao seu lugar, Fishroll trocou um olhar com S., que meneou a cabeça e soltou o cabelo. O antecipado discurso se iniciou.

"Estamos aqui, nós, poetas e poetisas que ainda nos lembramos e celebramos em nossas palavras tanto que quase foi esquecido, mas que ainda é louvado e cantado nos mais inimagináveis lares. Nós que aqui nos reunimos para testemunhar e fazer parte de dois exemplos do que nos faz mais humanos e ao mesmo tempo tão primordial e poderoso quanto os deuses. Nós que no dia de hoje escolhemos provar juntos o néctar do melhor de dois mundos. Por sede e por amor.

Que o vinho que beberemos hoje honre o casal que acabou de se unir enquanto ambas se amarem. Que possamos celebrar com elas tudo o que as faz serem quem são e que as faz quererem ficar juntas; as mulheres e homens que hão de despertar nelas e em cada um de nós ainda hoje, reinando sobre todo o resto. Que cada sensação, seja visão, gosto, cheiro, toque ou ilusão se entranhe em nossas mentes e nervos para que jamais esqueçamos do que viveremos; da vez em que fomos extasiados Bacantes.

Que o prazer de simplesmente estarmos aqui se multiplique exponencialmente quando o véu entre o sagrado e profano, divino e terreno ficar tão fino quanto o tecido de nossas vestes e nossos risos e gritos e rufar de tambores ecoarem por estas árvores convidando Dionísio a nos honrar com sua presença festeira. Que nos libertemos e deixemos que nossos corpos nos mostrem aquilo de que somos capazes de sentir e fazer. Que o sangue em nossas veias pulse forte e se torne alimento olimpiano sagrado de que até mesmo eles queiram provar direto da fonte após a correta manufatura. Que morramos de amor, fome e tesão para renascermos conhecendo o que só a alguns é proporcionado."

Quando os tambores começaram a tocar ao compasso de corações e logo viraram nada mais que um zumbido, o vinho embotou os sentidos, relaxando e despindo corpos que nunca imaginariam estar ali. Tudo o que se sentia era calor e nomes e pseudônimos foram esquecidos. Sacrifício em honrosa vingança foi oferecido. Belezas que corações e olhos apenas achavam que conheciam foram apreciadas em sua plenitude. Almas que se admiravam pelo que sua tinta produzia viam e ansiavam por quadril contra quadril, lábios engolindo lábios.

O animal dentro de cada um veio à tona e com eles garras, presas, asas, bicos, patas. Rugidos e outros ruídos animalescos saíam em perfeição de bocas humanas (ou já nem tão humanas assim). Não havia certo ou errado, medo ou hesitação. Peles que já se sabiam sensíveis vibravam ao conhecer e implorar pelo indescritível que vinha de si própria e do outro. Mesmo a dor física já pouco significava.

Segredos confessados ao pé do ouvido; meninas, especialmente S., transitavam em languidez de colo em colo carregando consigo o perfume e contato de cada um deles sem questionar quem seria o próximo. Ninguém ali tinha medo da morte, das consequências ou da vida. As necessidades mais básicas daqueles organismos eram supridas por muito mais que acessos de gula.

Cada poro, pelo, defeito e espinha elogiado e adorado para quem quisesse ouvir. Palmas, quebrar de folhas sob pés que dançam sem saber por quê. A sensação de que se pode fazer o impossível, e essa mesma sensação se fazendo verdade de muitas formas na abertura e libertação de tudo aquilo que cada um tinha de mais seu e mais oculto. A conversa e visão do divino.

Beijos que pareciam mordidas, mordidas que acariciavam feito beijos. Hematomas vistos como feridas de batalha feitos por dedos, unhas e dentes manchados de sangue. O transe dos sons repetitivos, até mesmo os gemidos, e nada era o bastante. Nenhum peso era pesado demais; menos ainda sob os olhos de um deus a quem muitos paravam para brindar e postar-se aos pés. Desejos dos mais variados realizados num estalar de dedos ou num tapa com as costas da mão tão forte que quase faz desmaiar. Poções de amor com gosto de veneno escorrendo nos cantos de bocas famintas.

O tempo parecia um conceito ainda mais abstrato do que eles achavam que fosse. Por dentro e por fora eles se sentiam jovens e ao mesmo tempo velhos; como se fossem imortais e também que morreriam no próximo minuto. Passaram a conhecer uns aos outros até pelo lado avesso. Sentiam quase mais do que o corpo poderia suportar. Idiomas inventados ali mesmo que se alteravam ao prazer de quem falava e só eram entendidos por cada amante do momento como um código secreto, assim como a ressuscitação de alguns ditos como mortos.

Quando o dia amanhece e o ritual termina, tudo o que eles conseguem fazer é levantar-se dali em semi-catatonia e avisar a moça conhecida como Endy de que ela precisa recolher as cinzas da pira do sacrifício e dar um jeito de se desfazer do que não queimou. Mas eles sabiam que agora tinham ambrosia nas veias.

29/12/2017

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