quarta-feira, 31 de março de 2021

Sincericídio

 Respiração acelerada, passos apressados. A bolsa escorregando pelo ombro, por pouco não derruba tudo. Sempre foi um desastre, esquecendo o zíper aberto e a aba levantada, largada de qualquer jeito nas cadeiras. Hoje não. E mesmo assim…

Estação lotada, um frio do cão, gente se esbarrando mesmo sem querer. Esperava que não tentassem puxar a alça da bolsa porque não queria ter que usá-la para bater em alguém. Ainda que pesasse, aquele peso estava ali para tudo menos manter posição de defesa.

Não queria pensar no que carregava como um fardo, por mais que às vezes parecesse tão fácil de se quebrar. Não importa o que dissessem, aquilo estava sempre pronto para ser usado, para ser compartilhado, sem medo, no seu tempo, apesar dos riscos.

Sentou no banco da estação assim que encontrou um espaço, com a bolsa no colo e as mãos sentindo o calor que vinha dali através do tecido. Olhou para frente e achou ter visto um vulto do outro lado dos trilhos. Percebeu que a hora estava chegando e sorriu para consigo. Abriu o zíper da bolsa e enfiou o punho dentro dela num gesto tão delicado quanto decidido enquanto caminhava em direção ao trilho.

Contou até dez sem desviar os olhos e lentamente foi retirando a mão cheia, mas firme, apesar da pegada estranha, de dentro da bolsa… E ouviu o grito chocado de quem notou o que pulsava frenético entre os dedos, quase como se quisesse saltar e ir embora por vontade própria. E quem disse que não queria?

Alguns desmaiaram, outros fugiram, outros ameaçaram chamar a polícia. Mas tudo o que fez foi abanar a cabeça e afirmar com serenidade que aquele bem era seu e que podia fazer com ele o que quisesse. Que nada no ato era novidade; a única diferença era a frieza do lugar, o idioma diferente. Alguns dos que ouviram as palavras se perguntavam o que aconteceria e pararam para observar.

Mais por medo da própria pontaria do que do ato em si, aproximou-se com cuidado da beirada, mas não o bastante para pensarem que estava bancando Anna Kariênina. Apreciou por mais um momento o peso do que estava em sua palma e se pegou numa espécie de transe que só foi quebrado por ter visto o vulto outra vez.

Lutou contra o espasmo do próprio punho, agachou-se e rolou o que segurava pelos trilhos com os olhos apertados… Bem na hora em que o trem passou e parou, fazendo seus muitos barulhos que induziam aos susto e ao corpo encolhido. Podia ter dado tudo errado. 

Depois da eternidade que encheu os vagões e que o levou embora, quem ficou achou tudo aquilo loucura maior ainda depois que ouviu uma risada histérica misturada com choro de um lado, e um som parecido com ronronar do outro, vindo de quem agarrava o que foi jogado com as duas mãos - como um gato faz com novelos de lã. Empoeirado pelo caminho percorrido, mas intacto e que arrancou um suspiro de alívio.

“É teu agora, bichano. Fica com ele. Mas não é brinquedo, tá?”

“Eu sei, amor. Valeu esperar pra juntar esse coração com o meu.”


30/03/2021

- exercício de escrita proposto pela Maria Vitória do blog A Estranhamente

terça-feira, 30 de março de 2021

O basta há muito já veio

 Não importa o que chegasse perto da casa. Não importava quem saísse. Ele fazia barulho, ele gritava, esperneava, atormentava, sem ter noção da própria voz ou da própria força. Ele se assustava com o que nem tinha a ver com ele e pobre de quem ouvia. Dava vontade de mandá-lo embora. Dava vontade de questionar por que ele veio pra cá.

Ele era grosseiro. Se estourava fácil, dizia coisas sem sentido, achava que podia dizer o que passasse pela cabeça. Não me conhecia de verdade e eu estava há muito já cansada de tentar. Só queria que ele parasse, que não falasse comigo, que parasse de achar que o que é só meu também é dele pra dar pitaco. Que ele parasse de achar que manda.

Não tem tato. Não tem noção das consequências do que diz, que mesmo as pequenas coisas ficam e machucam. Acho que foi assim que aprendi a ser cruel. No fundo quer ajudar, mas a verdade é que só atrapalha, porque quer tomar meu lugar fazendo tudo e tudo do próprio jeito. Não sabe ensinar, não sabe dar espaço, não sabe quando parar de se envolver. Dane-se quem esteja ouvindo - despeja ordens e põe a mão no que não é seu. E quem não faz é mal-agradecido e burro.

Só o que eu quero é que pare. Só o que eu quero é ir embora.

29/03/2021

- exercício de escrita proposto pela Maria Vitória do blog A Estranhamente

segunda-feira, 29 de março de 2021

Vida de segunda

 Mais uma segunda. Na segunda eu tento ter disciplina. Na segunda eu tento ser adulta, ainda que digam que eu ajo como uma criança, nem que seja só um pouquinho. 

Nem que seja pra gastar os dedos mandando emails que provavelmente não serão respondidos. Nem que seja só pra receber um não. Nem que seja pra tentar construir um futuro onde, olhando lá pra fora, parece não haver nenhum.

Gastando os dedos com variações das mesmas palavras, quando eles poderiam estar fazendo carinho no inesperado que veio pra mim. No que quer o que quer mesmo de longe, mesmo com a loucura, mesmo com o medo, mesmo com o contexto insano.

Na segunda eu levanto e tento de novo. Quero pelo menos um fim de semana. Dois dias e meio pra lembrar das histórias largadas, das profundidades necessárias, de que existe mais nesse mundo, do formato da lua e das estrelas do céu, nem que seja pela voz do inesperado.


29/03/2021

- exercício de escrita criativa proposto pela Maria Vitória do blog A Estranhamente

sábado, 27 de março de 2021

Projections

don't tighten your grip
on me,
please no,
for my soul is to be free.

but also, 
don't quite let me go...

for time might be generous
to trust us 
and might allow me to be
more than this.

more than the shadow of a kiss
to bruise your lip.

27/03/2021

quarta-feira, 24 de março de 2021

Faun's labyrinth

 Your presence
is in the air
in the constance
in which it makes me aware
of every rightness
and dissonance.

In every image
you planted and won't take back
from the darkness -
the palm on my hip
playing with the fingertip,
the mouth on my neck
down the warmth of the cleavage.

You are present
and yet absent
in the mark behind the ear
waiting god knows how many a year
to be maybe more than a ghost.

I don't blame the hunger now
when there was nothing then.
After all, I don't even know
if things are ever gonna get even.

In the meantime, I appreciate the host.

24/03/2021

segunda-feira, 22 de março de 2021

A pelican's wound

 Poor, poor lad!
By making an art
of all the ways I could break your heart
I cast you the hardest stone,
the one that makes you most sad -
I break my own.

22/03/2021

sábado, 20 de março de 2021

Of the sublime

Your voice to me
is more than sound -
it is a sea,
it is among the things, the forces that abound
in how they rise and rise
and come,
so wise
only to forevermore,
however briefly,
touch the shore.

Only to go back
in their track,
in and out, on and on,
a wall that knows
the ways it grows
from the bottom, paramount,
Topkapi outside of Istambul,
only to suddenly be undone
into a touch so humble
as you speak...

Never detrimentally weak.
Instead, just conducted by a hand so warm
that can cause and stop the same storm.
One of which I wonder if I would feel afraid
but through which
I take the pleasure in being a wee fish
just here, to navigate.

19/03/2021

sexta-feira, 19 de março de 2021

Homecoming

 I wish I could talk
with way more pride
of the language, name and land
I was given.

With the same one with which I write
these lines
under this taken pen
that reaches far and wide
so that even my folk
who dream that I would walk
do not understand.

I wish I didn't let down
my own past,
this wretched, forgotten town,
on its, like mine, old, disjointed bones
that insist to last
at the corner
of the border
only to watch its own doom.

I wish I knew it as well
as the worst parts of myself -
to hear its voice like the bell
at five o'clock.

I guess I can still wish
for high river with fish
and good enough health
from the boon
of a late, yet welcomed bloom
to our stock.

Or do I really?

18/03/2021

quinta-feira, 18 de março de 2021

Work anew

 I love you
not like you do...

Not yet.

I'm sorry
if it seems that I play hard to get
when loving for me
is a thing so easy...

But who knows,
time is a river that flows
exactly the way it wants!

If you work hard enough
to woo
a buttery skin that tries to be tough
when you least expect...

You may achieve the goal you pursue
watched by the sunset.

18/03/2021

segunda-feira, 8 de março de 2021

08/03/2021

 Mesmo quando ofereço
sem esperar por algo em troca,
sei que ofereço
aquilo que gostaria de ter.

- trecho do meu diário

Rocha

Deixo a luz do sol bater um pouco a cada vez sobre as várias faces e ranhuras lapidadas por tempo e destino para que ilumine e penetre a gra...