sábado, 3 de dezembro de 2016

Contos da Solidão - Pretenso amante

Outra manhã destas em que acordei cedo demais, sem precisar, e fiquei em silêncio observando o reflexo da luz dourada da manhã de sol nas paredes azuis e teto branco do quarto de barriga para cima, como de hábito enroscada nas cobertas por mudar de posição e esquecer de puxá-las. Eu ouvia os passarinhos, um latido ocasional de cachorro, a minha respiração...

E a dele/dela. Ainda masculino até a hora em que eu levanto, quando se faz tímida (?) e ao mesmo tempo provocadora mulher. Até onde percebi, sua face feminina tende a ser mais silenciosa provavelmente porque não tenho quase nenhuma privacidade em casa e com certeza não quer ser ouvida por terceiros. E mesmo quando a noite chega e as luzes se apagam, eu tenho a impressão de que os outros que vivem aqui ouvem meus pensamentos através da porta.

Sem paredes, sem portas... Livre e no entanto enjaulada dentro de mim mesma. Um simples objeto cai no chão e faz meu coração disparar. Eco em cada passo, em cada palavra. Maldito piso laminado. Não vejo a hora de sermos só eu e a Solidão, nós que nos dizemos tudo aos sussurros e principalmente através das sensações. Nós e o velho jogo; quero sentir um dia que mais ganhei nele do que perdi. Que consegui manipulá-los tanto quanto ou até mais do que eles a mim.

A moça não precisa dizer nada, se não quiser. O homem fala por ela de qualquer maneira. E eu sei bem que ambos querem as mesmas coisas. Afinal, são um só ser.

Ao meu lado, senti-o virar a cabeça na minha direção, apertar um pouco o braço que tinha enlaçado em minha cintura contra meu estômago, seu peito expandir-se ao puxar o ar até o fundo dos pulmões e depois soltá-lo devagar, contra meu cabelo, antes de depositar um beijo no mesmo ponto do couro cabeludo.

- Minha linda... Já acordada?

- Pelo jeito sim. E tu também.

- Bom dia, então. Eu te amo.

(Silêncio. Sorriso contido.)

- Eu não posso. Não posso me apaixonar por ti. Não posso; do contrário tu vais me deixar oca por dentro. Tu és traiçoeiro (a) por demais.

- Isso nunca aconteceu. Ainda estás aqui.

- Porque eu nunca deixei! Tu quase conseguiste uma vez, mas eu virei a mesa e não há de acontecer de novo.

(Silêncio.)

- Só quero me entender contigo...

- Eu nunca vou esquecer daquela noite. Nunca te vi tão bonita, tão entregue, tão minha, tão mulher.

- Em primeiro lugar, eu pertenço a mim. Mas não. Não me arrependo.

- Sei disso. Nem eu.

- Tu pareces meu/minha amante...

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