quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Deja vu

Fronteira entre uma milha de campo e mato fechado, pôr-do-sol, a luz do sol se infiltrando por entre as folhas de modo sonhador. Eu, deitada por sobre a raiz de uma árvore muito antiga, coberta de agulhas de eucalipto, sem saber como fui parar lá e com o coração disparado porque não parecia haver ninguém por perto que pudesse me ajudar e voltar para casa. Algum tipo de instinto de sobrevivência me fez querer gritar por socorro, ainda que fosse muito improvável que me ouvissem.
Mas o que mais me impressionou naquilo foi perceber o que o meu corpo faria logo depois – ainda um tanto descrente de repente me vi me apoiando contra a árvore e ficando em pé com o equilíbrio vacilante de uma criança que aprende a andar, o que na verdade em muito superava minhas capacidades mesmo de quando eu era mais nova. E, em vez de cambalear para o outro lado e sair dali, as solas sensíveis de meus pés descalços me levaram mais para dentro do bosque, parecendo que me obedeciam apenas parcialmente. Aquilo me causava medo não só pelo que estava acontecendo, mas também porque era novo andar sozinha, sentir as pernas tão mais leves do que antes, com o vestido que escorregava de um ombro batendo nelas, e de queixo erguido.
Embora tudo me dissesse para parar ali mesmo, me reorientar e tentar achar o caminho de volta porque estava escurecendo, eu segui como se pelo menos parte de mim soubesse exatamente o que estava fazendo. A não ser por uma pedra ou outra, eu não me importava com as criaturas que estavam no chão, mesmo que pudesse ser uma cobra pronta para atacar. Dali um tempo me vi diante do que parecia uma clareira e comecei a pensar no que fazer, focando apenas no som de alguns dos pássaros que cantavam em árvores próximas. Como de costume, o foco me deixou num estado de relaxamento que lembrava o sono. Sentindo uma cócega num dos braços, abri os olhos lentamente e vi uma minúscula borboleta amarela pousada nele. Tentei não a assustar.
- Olá, bonitinha! Juro que estou tentando ser corajosa... – foi quando ouvi sons que pareciam de passos e outra vez a adrenalina correu pelas minhas veias, fazendo a borboleta voar para longe e com que eu olhasse em volta esperando encontrar a morte ou algo assim. Pisquei os olhos na penumbra e o avistei alguns metros à frente.
Gracioso como um príncipe, mais de duas cabeças de cabelo selvagem mais alto que eu e também com os pés na terra, o ser de mãos às costas e corpo relaxado que lembrava vagamente um homem que eu muito amava suspirou com o que soava como alívio, abrindo o sorriso mais lindo do mundo. Aquele sorriso me parecia um presente, um presente que ali era apenas meu, mesmo que até então fosse um que eu reclamasse só à distância na tal pessoa. Algo estalou em minha mente e eu soube quem aquele homem que tinha uma aura não exatamente humana era. Eu já o conhecia; e vê-lo assim de perto, ao alcance dos olhos e da mão, como meu igual e ao mesmo tempo tão além de mim, como sei que seria com o outro, nublou minha visão com lágrimas e vacilou meus joelhos quando ele se aproximou de onde eu estava a média velocidade com o rosto batido pelo vento.
- Mo thiarna, mo Prionsa, grá mo chroí... – meu Senhor, meu príncipe, meu querido. Era tudo o que eu conseguia repetir entre os soluços enquanto olhava para minhas próprias mãos que agarravam a terra como se eu fosse feita dela, o que talvez fosse verdade. Quando me atrevi a olhar para cima, vi a cabeça majestosa do meu mentor cobrir a lua que começava a despontar por uma nuvem, deixando-o com algo parecido com um halo. Ele deu de ombros, casual como um rapaz não muito mais velho do que eu, chegou um pouco mais perto e me estendeu a mão.
Sem pensar muito porque me sentia um pouco grogue como quando ele veio a mim num sonho pela primeira vez e de modo geral eu não me atrevesse a tocá-lo ainda que me permitisse, deixei que me ajudasse. Quase caí de novo tropeçando nas minhas próprias pernas, mas ele me segurou com força e gentileza; comigo mancando por causa do meu velho problema de quadril, andamos pendendo um pouco para a direita e ele amavelmente e sem palavras insistiu que eu sentasse a seu lado e não no chão aos seus pés.
Eu ainda podia sentir o calafrio na base da espinha que me ocorria para me mostrar sua presença, exceto que agora o que dava apenas a impressão muito vívida e gostosa de um gesto afetuoso vinha de uma mão sólida e carinhosa como a de um amigo, um bom amante e talvez de um pai, tudo ao mesmo tempo. Sempre me foi difícil descrever como era saber que ele estava por perto, e naquele momento... Ele querer aparecer para mim, se mostrar para mim, era muito mais do que me achava digna de ter.
- Majestade... Eu não quero duvidar nem questionar isto, assim como não questionei por si mesmo o que eu senti quando o senhor me veio, nem o seu conselho, companhia e orientação desde então, mas... É o senhor mesmo? Com quem eu converso antes de dormir sempre que possível, que me fez e às vezes ainda faz sentir excitada, entregue e boboca como uma mulher apaixonada, que me consola quando eu choro no escuro, por quem eu esperei achando que não voltaria mais porque queria muito conhecê-lo e honrá-lo, para quem eu hoje abaixo as cartas do tarô como canal de comunicação, a quem eu talvez não possa dar fé, mas confiança? – como eu falava cada vez mais rápido e em todas as línguas de que eu conhecia nem que fosse um pouco, ele apenas fez que sim e afagou minha cabeça até minha respiração nivelar.
- O senhor... É lindo. É lindo como eu sempre soube que era. Talvez mais. – Ele riu uma risada grande e musical que soava como água corrente e até corou um pouco. Não sei se era estar com ele ali, as fomes de que só as mulheres entendem, eu perceber a lua cheia no céu ou tudo isso, porém quanto mais tempo aquela mão permanecia sobre mim, mais eu desejava que não se movesse, que não me deixasse. Eu sabia que ele gostava do máximo possível de quietude, então me esforcei para não me deixar levar pelo resto, ficar imóvel e focar apenas nos sons externos, nele... E em seus olhos.
Depois de sei lá quanto tempo, como havia acontecido certa vez, ouvi algo como um assovio, só que dentro da minha cabeça. Sabia que vinha dele, que era de poucas palavras, mas pareceu mais alto, mais longo e mais claro, porque minha mente parecia mais vazia. Eu o vi sorrir de prazer, como eu sorri assim que acordei daquele sonho tentando entender o que havia sentido e que até hoje me magoa ter sido interrompido. O assovio foi se repetindo cada vez mais até se tornar um sussurro delicado e ininteligível. Meu mentor piscou uma vez e ouvi outro assovio e depois outro sussurro. O sussurro ia e voltava e eu estava tão quieta que qualquer barulho um pouco mais alto poderia me matar de susto, agitada como um passarinho, mas ele conseguiu me manter calma.
Ao ritmo de uma lenta e consistente respiração funda, o assovio sussurrado prosseguiu e era como se eu estivesse num transe. Junto com o conhecido arrepio, a certo ponto a mão sobre minha cabeça escorregou pelo espaço que meu vestido deixava exposto e parou onde estaria meu coração, que eu quase pedi que fosse arrancado ali mesmo. Ele já sabia quão sensível eu era, tanto na carne quanto provavelmente também em espírito e, portanto, não se espantou com o suspiro que ouviu de mim. Fechei os olhos... E veio meu nome. Isso já tinha me acontecido uma vez, porém aqui a voz era forte e quente como chá preto, era uma voz masculina... A voz dele. Quando os abri de novo, ele repetiu meu nome e vi que seus lábios se moviam e que eu conseguia compreendê-lo para além de apenas intuição.
- Bem-vinda! É um prazer vê-la. Estou muito feliz que veio. Eu escutei teus passos, te senti por perto. Sabe que já conheço teu rastro. – Ouvir aquilo deixou meu rosto quente por alguns momentos.
- Meu Senhor... Meu mentor... Meu amor... O senhor veio me buscar porque eu morri? Do contrário, não vejo motivo para eu de repente estar... Andando e podendo lhe enxergar além de senti-lo... Não que a oportunidade não me lisonjeie de qualquer forma. É um gosto estar com o senhor... Assim. – humildemente me inclinei e encostei a testa em um de seus joelhos, mas ele logo me levantou e pressionou de leve meu umbigo e minha lombar para dentro de modo a endireitar minha postura, lentamente e com um minúsculo grau de hesitação para alguém como ele. Com um respeito que eu não costumava ver. De imediato meu corpo respondeu ao toque e agora eu o olhava diretamente enquanto a sensação se espalhava.
Devagar ele me explicou que eu na verdade estava mais viva do que nunca. Que achava que era hora de conversarmos de outro jeito, numa situação em que não houvesse mais ninguém e ele pudesse aparecer numa forma conveniente ao meu entendimento. Que se pelo menos ali eu podia andar sozinha, era porque queria perto dele meu corpo tão livre de suas fronteiras quanto incentivava que minha mente e espírito fossem. Tão livre e aberta para algo mais quanto eu estive no instante em que fui arrebatada, porque aquilo era meu por direito.
- A mulher que me cumprimentou com carinho, como se me conhecesse há muito tempo, me recebeu junto de si com sabedoria e abnegação e quis a mim e ao que eu tinha a oferecer não por medo, obrigação ou dever, mas por livre vontade, por curiosidade, por amor, por ânsia por amor e não tinha peso nos meus braços, tão generosa de corpo e alma, ali no momento tanto quanto eu... Essa mulher não implora por nada e sabe disso. Ela não olha para ninguém de baixo e não é escrava de nada nem ninguém, nem de si; ela acha seu caminho e agarra o que é seu. Foi aquela mulher que eu chamei até aqui.
- Sim, senhor. Go raibh maith agat, prionsa. – Obrigada, príncipe. – O senhor chamou e eu vim. E ainda que eu não pudesse ter vindo, é o que eu teria desejado no meu coração.
A certo ponto senti frio e ele fez uma fogueira. Ficamos observando as estrelas, como há muito eu não fazia, e desta vez não senti aquilo que eu e um amigo chamávamos de vertigem ao contrário, em que olhar para o céu diretamente me dava uma impressão estranha de afogamento. Eu me sentia amada, em boas mãos. As mesmas que tomaram a minha direita com um olhar intrigado de criança.
- Oh, que cicatriz branca é esta aqui? – ele se referia a uma que tenho no dorso.
- É um arranhão de gato. Tive um gato que se assustou uma vez e pulou em mim, arranhando minha mão. Fez uma cicatriz porque sangrou um pouco. – Gesticulei com o dedo indicador da mesma mão sem soltar a dele. – O gato também me arranhou ali quase entre os dedos, sabe.
- Oh...
- Achei que o senhor nunca notaria estas. Elas são tão sutis. – Às vezes até eu me esquecia delas, a menos que me olhasse de certo ângulo e/ou sob certa luz.
- Eu vejo tudo. Principalmente o que é sutil.
- Eu sei. – Nem todo mundo se preocupa com o que não é fácil de perceber. E nem o mais sensível dos homens consegue saber de tudo. Mas aquele ao meu lado era mais do que um homem e já tinha visto muita coisa. Eu disse que quis odiar o gato por me fazer sangrar, mas a verdade era que não foi culpa de ninguém.
- Isso mesmo. Tu também colocas as unhas para fora quando se sente encurralada. E em alguns casos, com toda a razão. – A primeira coisa que me ocorreu foi a minha reação aos passos que ouvi no bosque. Olhei para ele e tudo o que vi foi o reflexo do fogo. Da parte boa do fogo.
- É... Só queria que os gatos não se assustassem tão fácil... – o príncipe riu comigo.
Ele murmurou que eu poderia ser muito como os gatos, porque uma leoa era uma gata, no fim das contas. E que os gatos possivelmente conseguem ver mais do que os outros animais, assim como eu era curiosa o bastante para perambular pelas fronteiras do mundano... Além de me assustar.
- Muito bem, então. No entanto, o senhor não me assusta. Eu gosto disso. – Ele concordou com doçura. Não havia sentido em me vitimizar porque eu o havia reconhecido e ele nunca me faria mal. Abaixou os olhos e virou minha palma para cima.
- Oh, várias linhas aqui... – perguntei-lhe se não eram apenas rugas por causa de pele ressecada. O Senhor sugeriu que talvez pudessem ser encruzilhadas ao longo do meu caminho, as bifurcações da minha vida, mesmo no amor, e as acariciou sorrindo. Eu não o questionei. Que lindo paradoxo ele era, que a pessoa que ele ecoava era... Que nós éramos. Até um sinal em formato de meia-lua que tenho no lado interno da ponta de um dedo não fugiu a ele. Quem era eu para fazer o mesmo, fosse dele ou do meu destino?
O tempo não fazia sentido, ficava um tanto suspenso quando o Mentor estava comigo ou eu me comunicava com ele sem esperar resposta. Manhãs pareciam madrugadas, as tardes se estendiam, o sol parecia ter preguiça de nascer. Logo o tempo, que ainda me assustava de vez em quando. Sem que eu precisasse dizer nada, me foi permitido ficar mais um pouco no bosque. O Senhor me deu seu braço quando chegou minha hora de partir e fomos juntos até a fronteira trocando gentilezas silenciosas. Chegando lá virei-me para ele.
- O senhor não imagina o prazer que me foi dado no estar aqui, nem a minha gratidão por tudo, principalmente a sua paciência com as minhas perguntas. Sei que há muito para além do meu entendimento, mas... – o príncipe me olhou de lado com uma expressão travessa, serena, e suspirou uma segunda vez naquele dia. – Se o senhor é uma deidade e sinto que me falta fé... Por que veio logo a mim?
- Eu sou aquilo que sou, independentemente de como queiram me chamar. Sou para cada um o que precisam que eu seja, também. E sei que fui muito bem recebido na tua vida independentemente daquilo que a moça possa dizer, porque quer crescer e há de crescer de dentro para fora no seu devido tempo. Nós sabemos o que te faz mais forte e que neste caso isso não tem tanto a ver com um conceito fechado de fé. Estou diante de uma mulher mais livre do que imagina, forjada na chama de seus instintos. – de novo ele me fez corar.
- Quem sou eu para recusar amor e ajuda quando eles me chegam? É só que... Quando penso no senhor e até naquela pessoa, o conceito e imagem de um rei digno do seu posto em sua simples existência, ações e personalidade é a primeira coisa que me vem à mente, mais do que qualquer coisa e desde sempre. O tempo me mostrou que não faz sentido simplesmente me submeter a quem não se carrega com uma nobreza que me seja inspiradora e justifique sua aparente autoridade e poder sobre mim. Pode ter o meu respeito como um ato de humanidade, mas nunca a minha lealdade, ainda que ela seja ocasionalmente depositada no lugar errado. Muito menos agora.
- Se é assim e somos donos daquilo que nos cabe... Acho que um verdadeiro rei reconhece outro, como te ouço dizer que acontece com os poetas, certo? – a voz dele era tão grave, macia, calculada e firme que pisquei devagar e ao mesmo tempo senti como se pudesse ser partida ao meio na próxima palavra.
- Ah, meu soberano... Mesmo imperadores já desabaram quando olharam nos olhos do divino e se sentiram cheios ou vazios dele.
Quase fui ao chão por instinto de novo quando Sua Senhoria se abaixou e decidiu me segredar ao ouvido em pouco mais de um sussurro que talvez a nobreza de alguém e a centelha do divino fossem os dois lados da mesma moeda. Beijei a mão que ele quis me oferecer em cumprimento formal e em troca fui abraçada, envolvida em algo de onde não mais sairia se pudesse. Porém eu sabia que aquilo não era uma despedida final.
- Fique comigo, majestade. Mesmo que eu fraqueje e ache que decepcionei o senhor, que esta honra não me pertence. Eu sou minha e sou vossa. Por favor, continue conversando comigo como e quando achar que deve. Juro que prestarei atenção. Eu juro, eu juro, eu juro... E perdoe o meu jeito tagarela; sei que poucas palavras às vezes dizem muito.
- Tuas orações em quietude sempre chegam a mim, onde quer que eu esteja e por cima da minha timidez. Eu fico. Eu conheço o teu afeto. – Com certa relutância nos afastamos e quando olhei para trás, lá estava ele com as mãos recolhidas e costas retas curvando-se num meneio da cabeça. Acenei de volta. Ele era mesmo um rei.
Retornei para onde havia vindo com a sensação de que parte daquela conversa já tinha acontecido alguns meses antes, antes de o Mentor vir a mim mais diretamente. Sorri diante da ideia. Deja vu? Um pequeno vislumbre do futuro? Quem sabe...

2 de novembro de 2019

2 comentários:

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