sábado, 18 de maio de 2019

S/A

Caro A.,
Não via a hora de te escrever e contar sobre estar aqui, e também de saber notícias suas! Precisava dividir isso com alguém e tudo agora de alguma forma me remete a você. Você sabe que não estou aqui por vontade própria e sim por circunstâncias de que não exatamente gostaria. Tudo aconteceu tão rápido... Sei que isso é temporário, mas parece que vai durar para sempre. Posso até não considerar aquele lugar como minha casa e eu agora entendo que fazer o que fiz é o remédio quando não há alternativa, mas me parece errado estar assim em um lugar que de maneira nenhuma realmente te pertence.
É tudo muito estranho aqui, não só por não ser minha casa, e não consigo me sentir bem. É tão gótico e surreal. O silêncio faz com que eu me pergunte se os vizinhos e crianças são reais; mesmo que provavelmente estejam fora no trabalho ou na escola a maior parte do tempo. Logo eu que achava que por um lado seria bom e eu poderia trabalhar e pensar em paz no que fazer! Mas aqui ele é tão grande que qualquer som assusta. Olho pela janela da sala de estar e, durante o pôr-do-sol, as folhas da árvore grande que fica no gramado em frente brilham com uma sonhadora luz dourada...
De frente para esta casa fica uma área que chamam de bosque com pelo menos um banco de madeira podre e suja logo à vista, mas sei de mais um mais para dentro. Me disseram que não é muito pequeno, nem muito grande e sei que faz uma curva à esquerda, porém parece não ter fim durante a noite. Além de apenas algumas pessoas e durante o dia, nunca vi ninguém entrar lá. O bosque em especial me faz pensar em você, mas nada nisso a não ser seu nome me traz conforto – independentemente da miríade de coisas possivelmente tão maiores e mais velhas que nós que o povo diz que se esconde nos bosques que você mesmo me apresentou há um tempo.
Não sei dizer o que acontece, mas de quando em vez os cachorros de uma das casas ao lado uivam e choram todos juntos no que soa como o lamento mais triste durante minutos intermináveis. Até o que me comprometi em ajudar a cuidar parece dividir a tristeza em algumas ocasiões. Há casas aqui de todos os tipos e as grandes e antigas me fazem achar que foram construídas para que seus moradores nunca ou quase nunca tivessem que sair pela porta. Em anexo, na foto que te envio junto com esta missiva, está a lua cheia peculiarmente posicionada quase que exatamente entre o muro da casa onde estou e a de um vizinho. As folhas que espiam no canto são as da árvore brilhante.
A ruela em que esta casa está situada dentro do complexo é um beco sem saída, cujo paredão de tijolos se ergue duas casas e um campinho de futebol à direita de quem está aqui, com algumas das árvores do bosque quase lhe fazendo carinho. Mesmo nos fins de semana o movimento parece miragem; e olhe que por ora já vi a troca de duas estações enquanto estou aqui. Às vezes, quando olho para a tal área arborizada durante a noite (seja pela janela ou de fato parada do lado de fora), vejo um vazio negro e impenetrável ou uns poucos raios de lua entre as árvores bagunçadas...
Mais de uma pessoa, talvez pela falta de portões em frente ao gramado, já entrou nesta casa ou se aproximou dela sem se anunciar. Literalmente do nada. Até mesmo a dona original desta construção que parece tão mal-acabada, como se fosse uma assombração. Desde o momento em que pus os pés neste complexo e cruzei os olhos com um dos zeladores eu soube que seria bizarro ficar aqui; muito por causa de seus olhos muito grandes e de um sorriso que me parece bastante errado naquele rosto, bem como sua voz.
Eu nunca vivi assim, em território cercado de paredes a este nível. Parece um silencioso mundo separado em que me sinto ainda mais deslocada. É como se até o tempo passasse mais devagar aqui (e quase não sair também não ajuda). Sei que foi o único que pude encontrar, mas às vezes me questiono se foi a coisa certa a fazer. Você sabe o quanto sou ruim em tomar decisões e a capacidade de meus impulsos em me deixar ainda mais perdida... Só queria ficar longe, só um pouquinho... Felizmente o velho piano da proprietária ainda consegue me consolar. Foi até uma surpresa ver que uma casa estranha como esta pudesse ter um – mas, de qualquer forma, tudo aqui parece diferente.
Deve ser a solidão alimentando as minhas paranoias, mas esse lugar me parece cheio de negatividade (ou será eu sendo conduzida pela minha própria?) e que acho que a hora de eu voltar e encarar as coisas pode estar chegando. Não que algo literal e físico tenha acontecido comigo, mas alguns boatos que ouvi mesmo num contexto como este me fazem ousar imaginar o grau de nojeira a que o ser humano pode chegar. Juro que estou me cuidando o máximo que posso! Apenas não achava que seria tão desconfortável, talvez até mais do que o que me fez vir para cá. Não fui feita para estar onde estou. Você sabe aquilo que minha alma mais anseia e de todos os sentidos da frase anterior.
O loop a que estou presa estando aqui parece mais estreito e repetitivo do que nunca. Venha me buscar, meu amor. Por favor. Chega disto. Só você mesmo para olhar para mim com tanto carinho, com o coração tão aberto e vazio de julgamento; apenas desejando que eu faça o que tem de ser feito dentro das minhas possibilidades, como eu mesma te desejo e você bem sabe... Coragem e iniciativa são o que nos levarão adiante, mas tudo o que preciso agora é estar ao teu lado de novo; estar em casa. Apenas venha, o mais rápido que puder – o sabá terminou.
De quem muito te ama,
S.
P.S.: Não tenho como te agradecer o suficiente por ter me apoiado nesta empreitada louca – mas sei que tenho de voltar para a realidade e não sucumbir às minhas infelicidades/frustrações para que alguma coisa finalmente aconteça. Eu precisava tentar respirar outro ar, mas tudo o que sei é que o daqui não me fez bem. Pode ser que os meus pais nunca entendam o que fiz, mas não cabe a eles querer adivinhar o que se passa na minha ou na sua cabeça. Fico te devendo muito pelo resto da vida e pretendo te devolver em dobro, se for possível.

Olhos fechados em solidão. Silêncio, a carícia de mãos trêmulas e um tanto frias mesmo para uma tarde quente de outono. O produto da carícia em eco pelo aposento de distribuição engraçada, talvez atravessando a janela pela qual, pela primeira vez em algum tempo, não se pegou espiando. Apesar dos medos e ansiedades, nada mais do que o momento dentro do breve transe da Marcha Turca de Mozart. Tão centrada no agora, mesmo ali, como tantas vezes sente dificuldade em fazer, que não notou o que acontecia ao seu redor. De foco não na precisão do que estava fazendo, mas no simples fazer e do que ele era capaz.

S. não notou o sorriso de A. diante da quietude envolta pela música ao chegar ao aposento. Nem quando ele jogou a mochila que tinha nas mãos no sofá – sua cor de sangue um contraste peculiar com a costumeira neutralidade de suas roupas – e se aproximou suavemente do piano enquanto a peça aos poucos chegava ao fim. Querendo talvez dar um susto nela, A. escondeu uma das mãos às costas e com a outra gentilmente afagou o cabelo da moça.

- Fermata. – sussurrou ele exatamente quando a última tecla com a última nota foi pressionada e tal pressão ainda se fez sentir por alguns longos segundos. Pelo jeito o susto não acontecera, porque tudo o que S. fez foi abrir os olhos devagar e puxar a longa mão pousada sobre sua cabeça para que ficasse contra o rosto, como se aquilo fosse a coisa mais familiar e íntima do mundo. O que de fato era, em sua medida...

- Amado! – S. exclamou ao virar-se no banco do piano e atirar os braços ao pescoço do outro. Sendo muito alto e um tanto tímido, ele sorriu com afeto e dobrou o corpo para retribuir ao gesto, o rosto semi-escondido numa mistura do próprio cabelo e do dela.

- Desculpe chegar assim. Acho que meu aviso de que eu viria não te alcançou a tempo. Até cheguei a bater na porta, mas o piano provavelmente abafou o som. – A. levou a mão à cabeça, fez uma careta e instintivamente coçou entre as raízes do cocuruto. – Mozart, hein? Se eu não desejasse tanto fazer as coisas de ouvido e passasse mais tempo com as teclas, tocaria melhor...

- Melhor que seja você do que qualquer um. Muito obrigada mesmo por vir me buscar. E sim, era Mozart. – Exclamou S. ao jogar-se novamente no banquinho, enxugando uma lágrima que ameaçava cair do canto do olho. – Por favor, sente-se! Você deve estar cansado por causa do terreno acidentado. Há uma cadeira logo ali.

Tudo o que A. fez foi sussurrar “com prazer” antes de apanhar a cadeira e colocá-la de frente para a moça, respeitando quase um metro de espaço pessoal. Sentou-se com as pernas cruzadas e mãos nos bolsos da jaqueta; estudava a amiga ternamente, buscando seus olhos. Depois de algum tempo, ele viu S. morder o lábio, suspirar e deixar escapar um trêmulo “estou com medo”. A. assentiu com a cabeça e trouxe o tronco para frente no assento.

- Tudo bem ter medo. – murmurou o rapaz. – Você já esteve aí antes. Você sabe que medo é esse. Tente limpar sua mente e você vai saber como enfrentá-lo. – ele tomou a mão pequenina de S. numa das palmas compridas e cobriu-a com sua outra.

- Eu sei. – respondeu S., deixando a mão permanecer entre as dele. Depois de algum tempo em silêncio ela pousou os olhos nele e perguntou: - Gostaria de um chá? Tenho mel, se você quiser colocar um pouco. E umas torradas e biscoitos.

- Uma xícara quentinha entre as mãos... Eu te acompanho, muito obrigado. – ambos se levantaram para procurar entre os armários que rangiam; S. apanhou um xale depois de reclamar entre os dentes que a casa era muito fria.

Enquanto a infusão acontecia, A. apertou novamente a mão da moça.

- O que você acha de bebermos o chá no bosque? Pode ser ali no banco da frente... Queria conhecer o que te dá medo e por enquanto não está tão frio. O silêncio eu já senti: definitivamente não é como o do campo. A não ser que te deixe desconfortável.

S. pensou em abrir a boca quando os cachorros do vizinho iniciaram uma onda de uivo coletivo que dava a impressão de que estavam sendo torturados, ou que eram pessoas lamentando a perda de um ente querido. Gesticulou para que A. esperasse um pouco e foi buscar um pedaço de papel onde pudesse escrever uma resposta sem precisar gritar. Enquanto isso, ele sentou-se meio de lado ao piano, brevemente exercitou uma escala e fez um pouco de festa para o cachorro no fundo do pátio.
Respirou fundo com a caneta na mão, tentando ponderar se seus medos faziam mesmo sentido – se havia de fato, se não uma coisa, uma energia ali que a fazia estremecer. Concluiu que de qualquer forma precisaria encontrar um método de purificação que que ele provavelmente lhe estava sendo oferecido bem naquele momento.

“Quer saber? Aceito. Obrigada por estar aqui, por cruzar esta fronteira comigo.” Foi o que ela rabiscou e mostrou a ele. Então, com latas de biscoito, uma garrafa térmica e canecas enroscados nos braços e mãos, os dois atravessaram a ruela deserta até o emaranhado de árvores sem olhar para trás e a princípio sentaram-se no banco logo à entrada da clareira.

Por algum tempo falaram sobre tudo e nada enquanto bebericavam o chá e comiam. Depois, A. levantou-se e espiou por entre o emaranhado de árvores, instigando S. a acompanhá-lo. O rapaz descansou os utensílios ao lado de um tronco e deixou-se cair com as costas contra ele. S. pegou-se olhando em volta de si antes de se posicionar na terra sem se importar com a sujeira que aquilo faria em suas roupas.

- Estava com saudade... – sussurrou A. ao afastar um cacho caído aos olhos pela cabeça inclinada.

- Ah, eu também, você sabe disso. – S. indicou as próprias pernas esticadas à frente. – Venha, deite-se aqui. Queria te ver direito, sem fugir. – sentiu um pouco de hesitação, que logo desapareceu quando ele deu de ombros e descansou a cabeça sobre os joelhos dela.

- Sei que você não foge porque quer. Mas eu te acho, como agora, como sempre. É questão de treino.  – sorriu A.

- É verdade. E sempre encontra o que mais importa, como só outro homem na minha vida é capaz de fazer. Porém eu falo sério: chega de me esquivar do que é bom para mim. Além do mais, ouvi falar em algum lugar que o caráter de um homem pode ser deduzido pelo modo como ele aperta a mão de uma mulher. A julgar pelo seu, é um abraço de respeito, carinho e igualdade. É justo que eu me deixe levar pelo sono que vejo nos seus olhos. – ambos riram; A. brevemente cobriu o rosto com as mãos noutro cacoete de timidez.

- Eu agradeço, mas... Pareço sonolento e te causo sono? Eu ando quase sempre cansado, envolvido em mil coisas, é verdade... – diante da pergunta, a moça apenas fez que não e roçou os dedos entre os cachos dele como se fossem solo fofo e revirado.

- O “sono” é uma gentileza que você carrega. Fico grata por confiar em mim o bastante para descansar em meu colo. Há tanto tempo não afago nada mais que a mim mesma ou o cão desta casa que esqueço que consigo fazê-lo. Claro que o cão conta, mas você entende o que quero dizer.

- Ah, obrigado! – S. sorriu ao ver A. corar de leve. – Os cães e sua honestidade... – ele virou-se de lado, com o rosto na direção dela, o cabelo comprido um tanto amassado.

Ela pensou um pouco e confessou que gostava da mistura de vulnerabilidade e força que A. parecia ter. E de como aquilo se manifestava tanto em palavras quanto no simbolismo do pouco de corpo que ele deixava exposto à vista por hábito deliberado nas camisas mal abotoadas e, às vezes, mangas enroladas. A fragilidade física de pescoço, mãos, olhos, pulsos e o espaço perto do coração abertos a dentes, garras e quase toda a intempérie. E, no entanto, sua altura e estrutura óssea o tornavam imponente, mas não de uma forma intimidadora. Que tal amostra de vulnerabilidade não eliminava, mas destacava a discrição com que tratava a própria vida para com quem não tinha intimidades.

Enquanto o sol se punha, os primeiros raios de lua os alcançavam e ele absorvia as palavras, A. efusivamente agradeceu pelo que ouviu e enfatizou a doçura e coragem de quem as dizia; algo que poderia ser encontrado e deveria ser exercitado em toda a humanidade. Que era bonito S. ver algo assim no que para ele era apenas um costume, bem como sua maneira de demonstrar afeto.

O cantar dos grilos veio com o leve frio da noite; A. virou-se de barriga para cima e, olhando para o céu, suavemente começou a cantarolar uma melodia que S. logo identificou. Ele acenou com a cabeça para que ela o acompanhasse, se quisesse. Lágrimas felizes lhe chegaram quando ele cantou de novo dia e nova vida. Foi com isso martelando em mente que S. olhou em volta e percebeu que não tinha mais medo do lugar. Ao voltarem para dentro eles arrumaram as malas dela, fizeram o jantar e partiram no dia seguinte.

10/05/2019

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