sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Retorno

 Assim que a casa silenciou um mínimo possível, e a minha mente também, pedi as graças e força que sempre peço. Conversei com Ele, pelo menos um pouco, como costumo fazer. Fui agradecida, como tento ser. Tentei ficar quieta, ouvir os barulhos da noite… Como se não existisse tempo, o ar perto de mim ficou pesado, parado e ao mesmo tempo borbulhando. As tábuas do piso estalando como que sob o peso de passos. Havia algo mais no quarto, uma energia forte, magnífica, que poderia ser assustadora se eu não intuísse de quem vinha.

“Mestre… É o senhor?” eu sussurrei, sorrindo, ainda que agisse na prática como um animal acuado prestes a ser abatido. Apesar do susto no corpo, entendia que não era predatório de verdade. Esperei, esperei, a sensação de que algo pairava sobre mim no quarto cada vez mais nítida até que passou. Adormeci depois de um tempo.

Horas depois, despertei de modo a me virar para o outro lado e senti contra o rosto, leve como uma pluma ou mais, como se um dedo me tocasse a bochecha e talvez fosse o que movesse o cabelo que ficava perto. Mesmo com sono, apertei os olhos na penumbra e vi um contorno meio iluminado como que agachado na beirada da cama.

“Meu… Senhor.”

A sonolência me induziu a fechar os olhos de novo e foi aí que eu o vi de forma mais detalhada, como que por trás das pálpebras - o rosto bonito dentro da moldura do cabelo. Sério, mas também sereno. Jovem, e também tão velho quanto o tempo. Próximo o bastante para que pudesse me tocar e eu o sentisse quase que em cima de mim, e distante e superior como compete o cerne de seu ser assim como minha percepção dele. Um rosto familiar, porém estranho e enigmático. A pressão no afago aumentou um pouco.

Dia duit, prionsa na foraoise.” Olá, príncipe da floresta. “O que posso fazer pelo senhor? O que o senhor pedir e que eu puder fazer, é seu. O que o senhor quiser dizer eu ouvirei com atenção. Queria poder te dar mais, mas não posso agora, e por isso evito fazer promessas. Mas… Eu amo o senhor.”

“Olá, querida. Não sou exigente. A moça já me fez a oferenda mas valiosa, a de si mesma. Eu vim conversar um pouco, ver como minha pupila está.”

“Eu… Quero ir para casa, príncipe. Parece tão longe… Caminha comigo de volta para casa… Meu lugar não é aqui.” Senti de novo a carícia no meu rosto.

“Eu sei, querida. A moça está indo. Eu te acompanho agora, mas a moça sabe andar no escuro porque só se orienta nele de algum modo quem sabe onde quer chegar no final.”

“Logo eu, esta criança impetuosa e sem foco?” Me peguei rindo da ironia, mas ele deu de ombros com um sorriso sincero.

“Com isso eu posso ajudar para que melhore e continue, mas muito a moça já fez antes de me conhecer e um pouco disso, talvez, foi o que nos colocou perto um do outro, em algum ponto do caminho. A resposta principal a moça já tem.”

“Eu quero ser livre. Eu quero crescer, ser uma mulher de verdade, amar e ser amada, fazer do chamado do meu coração a minha vida material. Não deixar que o mundo me faça esquecer de mim, de quem eu sou. Voltar para casa, ter um lar.” Beijei a mão sobre meu rosto com ávida reverência e de volta ouvi um som gutural de afirmação.

“A moça já está em casa. A mulher que hoje é minha súdita e companheira já está em casa e é mais que bem-vinda nela.” Havia amor e orgulho nas palavras dele e, mesmo assim, humana que sou, o questionei. Será mesmo?

“Eu, mulher? Eu, aqui, presa nesta gaiola de casa, com essas pessoas, tratada feito criança, podada como um bonsai quando sou um bosque inteiro, a mulher em mim tão difícil de acessar?” Ele sentiu minha raiva e voltou a me acariciar. Depois de uma longa pausa, falou novamente.

“A mulher que você é está aí, lutando pelo lugar que lhe pertence dentro do teu corpo. E isso se reflete no que a moça deseja no mundo que conhece e até nos outros mundos.” Perguntei por que, então, se eu já estava onde deveria estar, ainda sentia falta, fome. Ele respondeu que era porque eu e ele sabíamos que havia trabalho a fazer.

“O que faço com esta ânsia? Leva-me para casa, príncipe…” Eu pedi, entre lágrimas, voz sufocada.

“Nunca se esqueça. Não importa o que aconteça, a moça está mais perto de si, mais perto de sua casa neste plano, quando está nela no outro e se agarra àquilo que é seu e a quem te nutre. É mulher corajosa e árvore forte quando recusa a poda. Quando faz o que sabe e cobra pelo espaço e paz para tal e quando faz o que precisa para se tornar quem já é. A moça não é feliz de me ter consigo?”

“Sim, senhor. Eu sei agora. É uma honra aprender contigo, saber que o senhor voltou e não desistiu de mim. Simplesmente ser… Com o senhor perto de mim.” O mestre sorriu, e eu sorri com ele. “Só sinto raiva quando me puxam de volta antes da hora, até quando estou com o senhor. Fica tudo pela metade…”

O mestre pareceu suspirar, e sorriu outra vez.

“O que importa é que a moça tenta de novo e de novo. A moça não desistiu de mim nem de si mesma. Foi a moça tentar fazer contato cada vez mais e fazer-se minha que me mostrou que eu poderia voltar e reclamá-la. As coisas podem não ocorrer como merecem, mas ocorrem como podem… E quando podem. O importante é prosseguir. E isso vale na tua vida mesmo sem mim.”

“Eu entendo, mestre. Eu reconheço meu lado preguiçoso, mas também a minha evolução; por isso fica mais fácil enxergar a verdade com as mãos certas para desvendar os olhos. É só que… Minha alma tem pressa.”

O mestre murmurou devagarzinho que eu dizer que simplesmente sou quando estou com ele, em várias facetas que se alternam de forma espontânea, livre, muitas delas às quais eu normalmente não tinha acesso ou muito raramente, era prova de que, também ao chamá-lo, recebê-lo, tê-lo por perto de alguma forma, eu estava retornando. E quem retornava era uma mulher que sabe o que quer e o que ele pode dá-la, ainda que se esquecesse que era uma com muita frequência. A menina solitária que pede o colo dele é a mulher devotada e destemida que lhe ofereceu pousada no coração e até um lado da cama como faria com qualquer pessoa mortal que muito amasse.

“E que escreve o que a alma sussurra de modo apaixonado… Poetisa.”

“Ah, príncipe.” Eu mastiguei, tímida de repente. “O senhor sabe quando é para si, não sabe?” Logo depois, bocejei, me agarrando ao toque dele, que deu uma risadinha. 

Eu disse, de olhos pesados, que ele poderia ficar se desejasse, e rolei para a direita para abrir espaço. Recebi a mão nas minhas costas com um suspiro aliviado e satisfeito. Bem-vinda ao lar, querida - foi o que ouvi logo antes de cair no sono.

25/09/2020

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