quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Fermata

Abriu os olhos, e se viu com o rosto virado para a esquerda, para a janela grande e sem cortina, por onde podia ver os grãos de pó levantarem-se do chão e dançarem contra as flechas impiedosas dos raios de sol que entravam. Parte de si tinha a impressão de estar acordando de algo. Tudo o que aconteceu antes de desapertar as pálpebras doloridas não parecia real, mas mais aquilo que ecoa como um sonho que não quer parecer distante. Que não exatamente quer se apagar da memória, corporificado numa frase que achou ter ouvido.

Foi ao olhar para si que a verdade não se deixou negar – nas roupas desabotoadas e fora do lugar (mesmo que ainda em cima do corpo), nas costas doloridas, no vazio da sala e dentro do peito. Nas lágrimas que vinham mais quentes que um último abraço carinhoso que nunca veio e não deveria ser o último, e que lhe prenderam ao lugar e posição como um sinal de descrença e derrota escrito em letras garrafais. Em sua respiração pesada e ao mesmo tempo rasa.

No fundo aquilo lhe deixou imaginando se não havia algo no ar que entregou as duas partes, mesmo depois de todos aqueles anos e que, se fosse percebido, pudesse ter sido evitado. Mas nada concreto lhe passava pela cabeça a não ser um resto de rastro de perfume na biblioteca que aos poucos se perdia de vez. E foi ao tentar repassar o que havia acontecido que pensou encontrar um sentido que não foi menos doloroso.

Acima daquele escritório/biblioteca, abriu a porta de casa para um rosto que conhecia muito bem e que chegava para outra daquelas visitas que, mesmo tão naturais e frequentes quanto respirar, sempre conseguiam trazer um sopro de ar fresco a tudo. Como de costume, dirigiram-se ao porão: o lugar onde ficam as palavras, as histórias e os silêncios mais bonitos. Levando desta vez taças e uma garrafa de vinho contra o frio que mantinha suas mãos nos bolsos e deixava seus hálitos visíveis acima dos olhos mesmo no meio da tarde.

 O vinho aos poucos deixava as duas vozes macias e moles enquanto liam trechos talvez não muito aleatórios dos livros que escolhiam e seguravam como quem o faz a uma criança ou uma flor. Para sentir o som e efeito de palavras alheias nas próprias bocas e na pessoa para quem liam enquanto caminhavam sonhadoramente pelo aposento com ouvidos atentos, olhos que se encontram ao levantarem-se da página. Ou mesmo recitavam coisas que sabiam de cor.

Ao sentar-se na poltrona perto das escadas com uma perna cruzada sobre a outra, quem morava na casa fechou os olhos um tanto sonolentos pelo álcool e, como numa meditação, procurava prestar atenção apenas no som da voz da outra pessoa e na própria respiração; talvez numa tentativa de parar o tempo e permanecer ali sob aquela meia-luz dourada para sempre... Sua companhia era do tipo de amante que dizia admirar e até invejar sua capacidade de se focar no presente e nada mais – o que lhe fez sorrir por dentro.

A espécie de transe em que se encontrava foi profunda o bastante para não lhe deixar notar que a outra parte se aproximava até sentir seu peso sobre as pernas e uma leve mordida na linha do maxilar, próximo à boca. Algo como instinto lhe sussurrou para passar os braços em quem lhe olhava e segurar contra o coração o mais forte que conseguisse, e foi o que fez.

Parecia como antes – como nos tempos em que aquilo acontecia por costume, saudade e oportunidade, nem que fosse apenas para descansar estando perto, para ouvir a respiração. Ou para ter um lugar onde chorar sem dizer nada com o bônus de não se sentir só. Mas quem olhasse de fora saberia que o par de mãos na cintura e o outro em volta do pescoço já não eram os mesmos, por mais que quisessem negar. O desespero, ainda que inconsciente, sempre nos revela.

Depois de alguns minutos assim e dentro de uma aura de silêncio quase mortal, quem ocupava a poltrona afastou o outro rosto de seu ombro uns centímetros para poder olhar em seus olhos. Meneou a cabeça e quase se assustou com a rouquidão da própria voz.

“Aquela história... A tua história. Conta-me de novo, meu amor.”

Ainda com os braços enroscados àqueles ombros como as crianças costumam fazer com os adultos, o interlocutor expôs o arco do da garganta de modo quase pensativo, piscando os olhos devagar, até que respirou fundo e fez que sim, também muito lentamente. Levantou-se com seu jeito lânguido e começou sua história com as mãos para trás e o olhar fixo naquele outro olhar.

Talvez por conta do próprio conteúdo do que dizia, quem contava se portava com uma linguagem corporal um tanto específica, quase como numa coreografia. Mas não é sempre assim que acontece? E, no entanto, para a plateia, o que mais importava não eram as palavras (embora fossem muito tristes e belas em sua tristeza), mas como elas eram enunciadas.

Apesar de já ter visto e ouvido aquilo tudo milhares de vezes, tanto em público como em particular, nunca parecia a mesma coisa. Seu olho afiado e alma que ainda conseguia ser facilmente tocada conseguiam notar as mudanças sutis em cada ocasião – e isso só fazia o conjunto todo parecer mais e mais atraente... Não à toa havia se apaixonado perdidamente por aquele ser.

Particularmente naquele dia, havia algo de lindamente etéreo e dolorido e ao mesmo tempo terreno, magnético e sujo naqueles gestos e sorriso que, mais do que antes, trouxeram um gemido à sua voz que não pôde esconder. Que juntava o estar acometido por uma dor lenta e repentina com uma onda de prazer logo depois, mas que não estavam relacionados. Era difícil explicar.

Como já tinha acontecido algumas outras vezes, uma coisa ou duas fizeram com que quem ouvia se levantasse de onde estava e andasse pelo aposento de modo a acompanhar quem contava como se também fizesse parte da “dança” (muito embora o gestual e verbal falasse da solidão de não mais reconhecer-se, saber que isso é ruim, e ainda assim, mesmo que um pouco, apegar-se a isso porque a sensação principal é gostosa).

Quem contava a história notou que a outra parte lhe seguia de perto. Provavelmente de forma deliberada fez com que tudo ficasse mais intenso e emocional do que jamais havia feito. Antes que qualquer um percebesse, lá estava com as pontas dos dedos prensadas na curva da cintura da pessoa amada, que acabou encostando-se na estante de livros de pernas um tanto amolecidas.

A franja de quem falava roçava de leve contra aquele rosto por causa da proximidade ao ouvido de uma voz quentinha, macia e areada. Conforme o tempo passava, os dois corpos cada vez mais diminuíam a distância entre si e, durante breves pausas entre uma sentença e a outra, podia-se ouvir uma das vozes pedir por um beijo debaixo da respiração entrecortada. Que a boca queria, mas que era a princípio negado no gesto provocador de limitar-se à bochecha mais próxima.

Sentindo as lombadas dos livros fazerem pressão contra a pele por cima da roupa, fechou os olhos um instante, para desviar-se dos que lhe puxavam. Tentava concentrar-se nas palavras que ouvia; algo na emoção delas fez suas pálpebras arderem enquanto a outra linda mão de seu oposto lhe segurava o queixo com delicadeza. E em sua cabeça ecoavam corações partidos e rostos que não parecem mais os mesmos...

Até que os dedos em seu queixo relaxam e escorregam, um tanto frios, em direção ao pescoço, mas a diferença de temperatura não incomoda. A antecipação daquilo não lhe deixa se mexer, mesmo querendo jogar-se naqueles braços. As tais mãos se deslocaram de onde estavam depois de permanecerem no lugar por um tempo; palmas cheias de cabelo e com pulsações aceleradas debaixo de si, aos poucos dando a um lado o que o outro desejava. O que parecia entorpecer mais quem era beijado não era o que havia bebido e sim o final de gosto que sentia entre as comissuras. Era como ser nocauteado para fora de si.

A separação por um milésimo de segundo lhe permitiu ver o gesto reflexo de sua própria mão ao puxar um tanto bruscamente o colarinho do longo casaco de quem beijava, fazendo-o escorregar para longe de um ombro. Se aproximaram para outro beijo longo, lento e faminto, que parecia sugar o ar de seus pulmões e lhe fazer suar. Ouviu-se implorando por mais ao sentir como se muitos outros pares de mãos lhe devorassem.

Nunca lhe passou pela cabeça perguntar se a história que ouvia era algo inventado, pescado de outro lugar, ou um pedaço de passado. De certa forma, pouco importava que fosse blefe. Tudo era triste e lindo por si mesmo; até o suspiro fundo, cansado e carente da outra pessoa após a última palavra e o último beijo, reverberando nas paredes e contra a pele. Viu-se tremendo pelo frio ao escorregar um pouco, tendo a impressão de que os passos que se afastavam eram apenas um truque da excitação que abaixava. Só depois entenderia tudo e ao mesmo tempo nada... Que em muitas palavras também se diz adeus e “Não restava mais nada a fazer”.

27/01/2019

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