quarta-feira, 31 de julho de 2019

Bianca e o pássaro azul - excerto

Por mais que possuísse muitos servos no palácio que poderiam fazer (e faziam) sua toda e qualquer vontade e que iriam até os confins do mundo para obter o que ela quisesse sem que ela mesma precisasse levantar um dedo, já que era uma princesa, Bianca, como de outras vezes, fez questão ir à rua em pessoa escolher e comprar suas flores e frutas favoritas para tê-las em seu quarto. Ficaria feliz em encontrar boas laranjas, um bonito cacho de uvas escuras e talvez um ramo perfumado de alecrim.
Conforme andava pelo mercado, era cumprimentada por muita gente, já que o povo a conhecia como uma moça gentil e de fala muito mansa que fazia o que podia pelos que lhe pediam ajuda, intercedendo ao paradoxalmente generoso e inflexível rei, o seu pai. Naquele dia ela andava acompanhada de uma de suas amigas, que era filha de uma família nobre, e da serva que havia cuidado dela desde bem pequena junto com sua mãe.
- Sua Alteza já está moça, não fica bem andar assim. – resmungou a criada.
- Assim como? Por acaso estou pela rua sozinha, ou tarde da noite? – indagou a princesa. – Só quero minhas florezinhas e frutas. Que mal há nisso? Além do mais, é bom que as pessoas conheçam sua realeza para que possam contar com ela.
- Mas a Princesa cresceu e logo vai embora... – a voz da criada soou maternal chorosa, como se Bianca já estivesse muito longe dali. Ela estacou onde estava de braços dados com sua amiga, uma jovem duquesa por nascimento, e olhou para a mesma com expressão interrogativa no rosto franzido.
- Minha mãe ouviu falar que Sua Majestade, o rei, decidiu que você já está em idade de se casar, então escreveu cartas aos reinos e principados próximos para que mandem seus herdeiros como pretendentes oficiais e que venham o mais rápido possível. – Sussurrou a duquesa. – Isso não é ótimo?
- Não quando eu sou a última a saber. E para quando os tais pretendentes são esperados?
- Semana que vem, no dia do seu próximo aniversário, quando será dado um grande banquete anunciando que em breve você ficará noiva. Metade da população já especula que os mais ricos príncipes brigarão pela sua mão, já que minha Princesa e grande amiga é considerada o partido ideal! – a duquesa curvou-se de leve, com o rosto corado e uma risadinha brincalhona escapando nos lábios.
- Sua Graça está certa... Por mais que me doa ver a Princesa partir, temos que rezar e fazer a nossa parte para que tudo dê certo e Dona Bianca arranje um bom casamento... – disse a ama, afagando a cabeça da princesa.
Embora soubesse que, mais dia, menos dia, isso aconteceria, a mente de Bianca começou a girar e ela ordenou que não mais se falasse no assunto. Ela descobriria mais quando voltasse para o castelo, mas agora só queria um ramo de alecrim para lhe dar mais foco e clareza para o que viria adiante; já que muito provavelmente seu dote a um futuro marido incluía as terras férteis e belos palacetes que já eram seus por direito, não duvidava que seu casamento fosse outro dos muitos casos de mero acordo financeiro selado com a mistura do sangue de duas casas reais em laço matrimonial. Era de se esperar, mas não deixava de ser triste. Sempre ouvira falar que sua mãe aceitara o pedido de casamento do rei por amor, então desejava pelo menos conseguir ter o mínimo de respeito e consideração por seu esposo.
Dona Bianca separou-se um pouco de suas acompanhantes e caminhou alguns metros à frente até uma banca onde uma simpática mulher de meia-idade vendia ervas e flores, de quem comprou o sonhado maço de alecrim. A vendedora sorriu, agradeceu e lhe desejou sorte, aconselhando-a a guardar um dos raminhos em separado e colocá-lo em seu buquê de noiva. A princesa guardou silêncio, acenou com a cabeça e, olhando um instante para trás, dirigiu-se à banca ao lado, onde vendia-se frutas.
- Boa tarde! Suas laranjas parecem bonitas... Por acaso você tem uvas também? – ela perguntou, sem tirar os olhos da mercadoria.
- Laranjas bem doces e as uvas favoritas de Sua Alteza. Boa tarde para a senhora. – respondeu uma gentil voz masculina coberta de registro gutural, que mesmo rompendo o ar com leveza não evitou que Dona Bianca se assustasse um pouco.
- Oh! Como você sabe?
- Um passarinho azul foi até a corte e me contou. – Murmurou o rapaz, que logo fez uma mesura com as mãos às costas. – Perdoe-me se lhe assustei, madame.
- Está perdoado. – Bianca devolveu a mesura rezando internamente para um dia, quem sabe, não ser mais tão assustadiça como um gato. – Três laranjas destas e o seu cacho de uva mais vistoso, por favor. – pediu a princesa, que se pegou rindo do senso de humor do moço quando ele se agachou de costas para ela para apanhar uma sacola onde carregar as compras e as uvas, que ficavam conservadas no gelo.
- Aqui, madame... Suas uvas e uma sacola... – ele soou tímido de repente, o corpo um pouco retraído. – Estão geladas, se não se importa. Assim, permanecem frescas... Talvez queira chamar sua aia...
- Não será preciso, obrigada! Já tenho onde levar tudo. E é justo que estejam no gelo, assim como os belos buquês de rosa que eu costumava ver por aqui. – Dona Bianca indicou a bolsa que levava a tiracolo, onde já estava seu alecrim, e estendeu a palma direita ao jovem.
- Eu acredito, Alteza. – Ele sorriu, e a princesa percebeu que era um sorriso de criança, como de um menino. Aquilo infectou a princesa, que pensou consigo que há muito não via um homem que sorrisse assim. – Por conta de Andrea, seu leal criado. – Os olhos de Andrea puxaram os de Bianca por um instante, logo antes de ele abaixar o olhar e a cabeça quando seus dedos compridos roçaram aquela mão consideravelmente menor que as suas.
A moça fez que não com a cabeça, deu uma breve olhada no cacho, guardou-o na bolsa e, com a mão esquerda, sacou duas moedas de ouro de uma fenda no corpete do vestido para entregar a ele. Andrea tentou recusá-las.
- Não mesmo. Eu faço questão. Dois ouros pelas suas lindas frutas. – Aceito o pagamento, seu rosto se iluminou e sua voz soou leve, jovem e brilhante. – Agora me diga quais laranjas estão mais doces, por favor.
O fruteiro guardou as moedas no bolso do colete que ficava perto do coração e indicou que tinha quase certeza de que aquelas que se reuniam na fileira mais perto de Bianca estavam particularmente doces e suculentas. Deixou que ela apanhasse as que desejasse e sussurrou que adoraria saber se foram do agrado da princesa, quando e se ela aparecesse no mercado outra vez.
- Ou talvez por um criado... Se não for muito atrevido da minha parte, é claro... – o rapaz tinha os cantos da boca curvados para cima num apertado sorrisinho sem dentes.
- Não, não... – murmurou Dona Bianca num fio de voz. Ambos se despediram com uma última mesura e logo ela saiu para procurar a duquesa e a aia, que já estavam fora do perímetro do mercado normal, o que a fez demorar um pouco na busca.
Como encontrou-as entretidas entre sedas, brocados e rendas delicadas numa loja logo atrás da banca de Andrea, perguntou em tom jovial se alguma delas precisava de um vestido ou xale novo, sorrindo a quem se curvava em saudação.
- Claro que preciso de roupa nova, Dona Bianca! – exclamou a amiga da princesa. – Não é todo dia que se é convidado para um casamento real. – sua empolgação foi contida quando Bianca sibilou em desaprovação com um dedo aos lábios. Não havia mais ninguém na loja além delas e dos vendedores, para alívio dela.
- Alteza! Por que demorou tanto? Se eu não tivesse que acompanhar a duquesa também, teria ido atrás da senhora imediatamente... Nada disso é de bom tom. – disse a aia. – Imagine se a rainha ou a duquesa descobrem ou desconfiam que não cumpri meus deveres!
- Ora, não exagere, minha querida, o sol ainda não se pôs. E eu estava sendo gentil e educada com quem me vendeu as frutas, como você e minha mãe me ensinaram. E estou feliz com o que consegui. Olhem só que beleza... – Bianca abriu a bolsinha e puxou dela o cacho de uvas ainda gelado.
- Ah, parecem ametistas ou pedras de ônix, bem grandes e escuras! – admirou-se a duquesa, que trazia sobre o braço um pedaço de veludo. – Onde conseguiu estas?
- Naquela banca logo atrás daqui; as frutas dali me pareceram todas muito boas, o rapaz ainda deve estar lá... – a princesa indicou com a cabeça a direção de onde viera e esticou o pescoço para ver se encontrava Andrea em pé ou descansando sentado no banco alto que havia visto antes.
Mas ele já devia ter ido embora. Por algum motivo, tudo o que viu foi espaços vazios onde estavam as laranjas e nenhum banquinho, caixa ou mochila atrás da tenda. Sobre o pedaço de tampo liso da armação de madeira, percebeu apenas uma longa e bonita pena de pássaro, azul escura. Escura como o vestido também azul que ela própria usava, que tinha flores brancas com detalhes em azul claro aqui e ali ao longo dele todo, mesmo nas mangas; flores bordadas à mão. Como as uvas que segurava, em cacho que caía gracioso sobre si mesmo em espelho ao cacho moreno de Andrea, que nele ia até o queixo.
Ainda restava algum tempo até que o jantar ficasse pronto e o rei voltasse de suas reuniões com os lordes e conselheiros da corte, então Bianca decidiu passá-lo em seu velho esconderijo de infância comendo as frutas e pensando no que dizer a ele. Quem sabe não teria algum tipo de voz no processo. Mas, considerando que era o milagre, a única herdeira daquele reino, algo dentro dela a fazia duvidar que as coisas andariam minimamente a seu favor.
- Fui criada apenas para ser consorte e entregar meu reino a quem oferecer a melhor barganha, não para governar de verdade... – ela sussurrou para o vazio. – Isso pode dar muito, muito errado.
No entanto, as uvas que comprara de Andrea estouravam tão fácil na boca e eram tão diferentes de tudo o que já havia experimentado, que parecia haver algo nelas que aos poucos esvaziou e acalmou os pensamentos de Dona Bianca, fazendo com que ela conseguisse realmente caber dentro do espaço mais ou menos estreito, mas alto e de grande comprimento atrás do retrato de corpo inteiro de uma antepassada na parede leste de seu quarto. Quando chegasse a hora certa, voltaria a ser filha e saberia de tudo. Mas não agora.

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