sábado, 4 de janeiro de 2020

Bianca e o pássaro azul - excerto

Tremendo um pouco e com o coração disparado diante da constatação de que estava certa, Bianca repetia “eu sabia” para si mesma por entre sorrisos bobos, conduzindo Andrea para o velho quarto onde ele dormia quando a Senhora ainda era viva e que continha o altar com os instrumentos que ele mesmo usava; onde ele acendia velas e incensos para os espíritos do bosque e em memória da boa Senhora. O rapaz gaguejava querendo saber o motivo de ela estar daquele jeito, mas Bianca apenas fê-lo ajoelhar-se ao lado dela; depois disso encheu um copo que normalmente ficava na cabeceira da cama com água fresca e, jogando dentro um punhado de sal grosso do armário debaixo do altar, depositou sobre a borda um baralho amarelado e muito manuseado com a face legível para baixo e um grau de cuidado que quase beirava a repugnância. Andrea mal conseguia esconder o espanto.
- Mas como… - perguntou ele outra vez.
- Bardo… Feiticeiro… Eu sabia. - Bianca olhou com afeição do baralho para Andrea, tomando a mão dele entre as suas. - Não precisa me contar. Eu já sei de tudo. Aprendeu muito enquanto esteve fora e é justo que fique orgulhoso disso.
- Bem, isso é verdade… Como assim, meu amor?
Bianca falava devagar e suavemente, sem piscar. Seu olhar parecia perdido, um tanto sonhador, como se enxergasse alguma coisa num ponto para além dos olhos de Andrea - talvez através dele.
- De certa forma você me viu num sonho, certo? Eu vi tuas canções e tua volta nos meus poemas. Do que as canções falam. Eu te vi nas cartas. As cartas nunca mentiram para mim.
- Você lê as cartas agora? - não havia zombaria no tom de Andrea, apenas surpresa. Ele já não tinha mais dúvidas de que Dona Bianca era muito mais do que aquilo que aparentava. Assim como ele, ela tinha predileções e instintos borbulhando dentro de si, esperando a hora de despertar com o devido estímulo.
- Er… Perdão por não ter pedido permissão para tocar no baralho da Senhora, com as minhas mãos mortas… Mas é que… - a voz de Bianca ia ficando distante e triste. - É que… Eu estava sozinha aqui, te esperando, e de alguma forma ele me chamou. Ando tendo esses sonhos e… Depois que peguei no baralho, eles acabaram, e agora você voltou e…
- Shhhh, tudo bem. Tenho certeza de que não está amaldiçoado; se a Senhora tivesse te conhecido, estaria honrada em te ensinar o que quer que você quisesse, pois você deve ter aptidão para o que está lá fora. Você atravessou uma ponte e eu não… Acho natural sentir essa atração. As cartas devem ser um canal para tal energia até para você por agora. E você sabe que há ainda mais aí.
Andrea olhava agora para sua esposa num misto de ternura, preocupação e maravilha. O que aconteceu com Bianca só a deixava mais misteriosa e ele aguardava com antecipação a próxima surpresa a cada dia. Sorriu quando ela distraidamente roçou sua mão contra a própria bochecha com um suspiro.
- Mesmo, passarinho?
- É claro. Ah, como eu senti saudade… - depois de beijar o topo da cabeça dela, viu Bianca focar direito o olhar nele. De alguma forma notou algo diferente naqueles olhos e sorriso. Algo de mais obscuro, mas muito bonito.

2 comentários:

  1. A rigor o livre arbítrio é putativo.
    GK

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    1. Nem sempre o preço que se paga é algo em si mesmo feio ou para ser visto como fardo. Depende de como se lida com ele.

      - LBS

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Obrigada pelo feedback!

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