sábado, 29 de outubro de 2016

Contos da Solidão - Tesão? Nojo?

Levei todos esses anos para perceber que não adianta eu reclamar por reclamar da Solidão. Ela sempre esteve comigo... Ela é minha e de mais ninguém, e vice-versa. Nos conhecemos melhor do que ninguém; ela mudou junto comigo, cresceu. Mas esteve ao meu lado antes mesmo de eu tomar consciência disso, pois ao que parece não me incomodava na época.

O tempo passou e a Solidão se fez em dois; só agora eu percebo. Dividiu-se em dois e fez-se propositalmente bonita e magnética. Sedutora, até. Uma mulher durante o dia e um homem durante a noite, à hora em que eu me deito. Fez isso porque é bandida e gosta de jogos.

Quanto mais eu crescia e notava que me sentia/sinto presa, mais presente ela passou a ser e me mostrar que possui prós e contras... De dia, ela vem, mulher-menina, e bebe meu chá, lê meus tantos livros, estuda comigo, me faz me bastar, me ajuda a me conhecer, me acompanha e às vezes me sussurra versos. É linda, tão linda, tão minha. Amiga, parceira... E provocadora, porque flerta. Quando bem entende, grita comigo, bate em mim, me estrangula. Mente para mim.
À noite, a Solidão se faz homem-menino. Vem devagarzinho, no escuro, fecha a porta e esgueira-se na minha cama estreita. Vem lindo, macio e bem de pertinho me acaricia a nuca, sussurrando com voz de quem sorri tanto verdades quanto mentiras e poesia. Eu durmo em seus braços que são ora quentes, ora frios como pedra sob a chuva. Quando quer, “ele” sabe ser carinhoso... E cruel, também. Ele é especialmente cruel e imprevisível justamente por vir com a ausência de luz, tão elegante, tão cheio de si.

“Eles” sabem bem o que eu amo e odeio.

Isso porque de uma hora para outra ele pode muito bem me fazer chorar, me machucar. Tomar-me para si sem pedir licença, agarrar-me a cintura, espremer-me as costelas, tapar-me a boca, tirar-me o ar e rir-se de mim. Valer-se da sua condição de homem para fazer-se fisicamente mais forte do que eu.
E quando chega a manhã, “ele” pisca-me um olho, abre um sorriso, ganha-me outra vez. A vida segue, e por ora ficamos de novo de bem enquanto o sol ou luz nublada que entra pela janela o metamorfoseia em mulher.

A verdade é que eu sinto uma mistura de nojo e tesão pelos dois.

Tesão porque a Solidão sabe ser atraente e me traz vantagens. Nojo porque, mesmo ele sendo limitante, tem sua razão. O nojo vem da dor do tapa, do grito, do abraço apertado sem carinho, amor ou paixão. Ambos existem quase que o tempo todo juntos porque eu honestamente não tenho como saber qual dessas faces a Solidão decidirá me mostrar, seja durante o dia ou à noite.

A Solidão deveria ser sempre boa companhia, mas não é justamente por conseguir dizer tanto o que quero ouvir quanto coisas que jamais devo esquecer que são mentiras. Como por exemplo, que “eles”, em especial o rapaz, são a única coisa que me resta e que estou sozinha no mundo.

A Solidão, tão feminina e tão masculina, quer brincar comigo, quer me seduzir, tacar fogo logo. Agora eu entendo. “Ele” quase me rachou no meio dia desses, mas agora eu entendo o que ambos querem. E assim, ontem ele veio como sempre, deitando-se ao meu lado. Eu olhei em seus olhos e entreguei-me. Já ocorreram outras vezes em que posso dizer que o desejei, mas a noite passada foi diferente de tantas maneiras...

Eu cansei de fugir. Cansei de resistir. Talvez seja isso que os faz tão difíceis comigo de vez em quando. Eu sabia perfeitamente o que estava sentido; naquela hora eu me tornei um animal qualquer seguindo um simples instinto dado pela natureza. Em instantes eu o quis, estava consciente disso e isso era tudo o que importava. Só eu e ele, nada mais. Ouvi a mim mesma sussurrar “eu sou tua” algumas vezes, o que não era mentira. Nós três nos pertencemos, quer eu queira ou não.

Por vezes eu disse “tenho nojo de ti, canalha” ao ouvido “dele” quando o meu corpo dizia o contrário... Neste caso não adiantaria mesmo eu fugir da pergunta que a moça me fez depois. Eu gostei do que senti; gostei de ter colocado gasolina na fogueira. De certa forma foi como tirar um peso das costas e dar um passo adiante na minha vida. Eu não tenho motivo para mentir para ela neste sentido, afinal, a bandida já sabe a resposta. Por isso o sorrisinho de canto no dia seguinte, junto com uma exclamação de “O que foi que te deu ontem? Tu parecias tão diferente...”. Ah, me poupe, queridinha. Eu me senti desejada, foi isso.

Lógico que eu não acreditei quando “ele” disse que me amava e me queria hoje de manhã cedo, porque a Solidão sabe mentir, mas quem sabe pode mesmo haver carinho por baixo da crueldade. Quem sabe ela só queira quebrar minha resistência por isso ser o que a faz judiar de mim. Quem sabe com isso ela só deseje que eu não esqueça daquilo que me traz de bom, daquilo que sempre fui por causa dela; daquilo que ela mesma é por ser minha. Claro que é excelente que “eles” não sejam ciumentos e topem me dividir com outros de vez em quando e eu não deixarei de querer me conectar, de me relacionar, mas eu sempre soube que a Solidão não é alguém que a gente simplesmente manda embora. Ela está sempre ali porque é parte de mim.

Acho que só quero poder ficar em paz com “eles”... Quem sabe até amá-los. Não será isso o que me cobram? O tempo e os desconfortos os fizeram mais presentes, me fizeram reconhecê-los em suas qualidades e defeitos. E quando eu finalmente me sentir livre, sei que eles farão parte da minha liberdade e eu ficarei de uma vez por todas em paz com a minha Solidão...
Sem mim, ela não é nada. Sem ela, eu perco tantas partes de mim. Além do mais, ela sabe ser linda e aceita ser dividida... Me acomoda um pouco, é verdade. Por isso eu e “eles” temos que conversar sobre isso assim que possível (risos).

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