Embora eu no fundo esperasse que ele voltasse como dos outros dias, se não voltasse, tudo bem, porque no fundo nunca foi embora. O que eu tinha já era lindo, e muito daquilo já estava cravado como consolo da minha alma a ponto de ter me feito chorar depois que ele me deixou na ocasião interior. Ah, se soubesse de todas aquelas lágrimas que saíram de mim, aquela dor, aquele aperto como que de coração partido como nunca senti antes e com o adendo de que não era a dor de uma perda, mas pelo tanto que me foi ofertado e que me deixou transbordando como um cálice...
Mas ele voltou, para minha surpresa. Abri a janela da cozinha e lá estava ele, com aquele sorriso tímido, me enchendo de desculpas pelo atraso quando a honra é minha em recebê-lo de qualquer forma, e ele não me devia nada. Fi-lo entrar rapidamente para aplacar-lhe o grau de nervosismo e sentamo-nos à mesa de refeição de frente um para o outro. Ficarmos ali fez sentido por ser uma troca, como refeições são e deveriam ser. Anuí carinhosa e pacientemente a suas repetidas desculpas, perguntando-me que presente ele teria para mim naquela hora em que vinha com a selvageria e cheiro do mar mal contida no corpo, cabelo bagunçado e pigarro da garganta. Como de costume, seus desejos de que eu estivesse e permanecesse bem me aqueceram.
De novo, ele tinha vindo para ler para mim. Dividir comigo as jóias de suas estantes, as histórias e versos, pelo menos alguns deles, que lhe moviam o coração, e que achava justo compartilhar para que fossem talvez pontos de luz em meio ao caos crescente… Lá de fora e da minha vida, ainda, de certa forma. Eu e ele sabemos que as palavras são poderosas e que, às vezes, ainda que palavras sejam tudo o que se possa oferecer, que pelo menos dissessem a verdade, que fossem sinceras. E era ainda mais generoso poder ouvi-las dele próprio quando com a mesma ideia poderia ter simplesmente me emprestado os livros, marcados em certas passagens. Poesia e boas histórias podem mesmo curar pelo menos um pouco e acho que ele sente isso também.
Tirou do bolso um exemplar velho, amarelado, dizendo que não sabia se poderia fazer aquilo mais vezes porque a vida estava entrando no caminho… Mas que tinha tempo e vontade de ler nem que fosse um conto curto de um autor que gostava. Como se naquele gesto em si e naquela linda cadência uma única linha não fosse pão sovado e mel, ainda que a cena descrita fosse triste ou algo parecido. Nada daquilo me importava, contanto que ele estivesse ali por vontade própria e pelo tempo que desejasse. Tanto a presença como a ausência dentro daquela vida tão dele me alegravam à sua maneira.
Lá estávamos os dois, de um modo ou outro lamentando o mundano que nos interrompia com tolices como quase sempre parecia fazer em superfície. E mesmo assim ele tinha minha atenção, naquela voz que me puxava para si e me embrulhava no veludo elegante e escuro de um vestido de viúva jovem e enlutada em sua particular pitada de tristeza. Acho que foi até ter notado isso naquele dia em específico que fez com que, por baixo de todo o resto, eu mais sentisse do que ouvisse o que era lido.
Talvez mais do que se eu própria estivesse lendo, aquilo parecia tão tangível, tão vívido, vindo de uma boca tão humilde e tão consciente das pausas e da música nas coisas. Ou talvez só fosse meu jeito um tanto ingênuo de me enamorar tão fácil pelos pequenos detalhes e o tempero do meu afeto e admiração pelo homem que estava comigo. Tanto faz, na verdade. Nada se anula, muito menos o mérito do texto em si e do que a junção de tudo me fez sentir.
Eu me sentia como a mulher cega que vê poços do poema irlandês e a moça espanhola também cega que vê a cidade e lê os romances pelos olhos dos outros… Não digo que por cegueira minha, embora ela de certa forma exista, mas… Porque por melhor contadora de histórias que dissessem que eu fosse e os pormenores o que mais permanecesse comigo, era diferente ouvir as descrições, situações, as rimas dos poemas. De certa forma me apaixonei, assim como o protagonista do conto, pela mulher linda que ele admirava sob a luz dourada e onírica da tarde; mesma luz que a minha mão já havia descrito tocar pessoas que eu amava, tanto em prosa como em poesia. Claro que ouvi-lo ler até a lista telefônica seria um prazer, mas…
A luz artificial da minha casa cansou-se de nós e nos deixou no escuro, mas deve ter se apiedado depois, porque logo voltou para não me privar daquele amor retrocedido um tantinho em si mesmo antes de seguir desenrolando-se diante de mim como uma bandeira ou flor que desabrocha pela gentileza de quem lia; similar adoração do menino do livro catalão que segurei nas mãos há mais de uma década como quem explora uma paixão tão proibida e improvável quanto. Dali um tempo eu e minha visita nos pegamos desejando que a luz não se fosse outra vez.
Junto com a energia, o resto o puxou para longe de mim antes que ele pudesse terminar o conto, talvez em espelho ao que acontecia lá; hora que se faz tardia demais e sem explicação. E, mesmo assim, não o quis menos bem do que queria dias atrás, pois a vida tem dessas, embora parte de mim, humana que é, se chateasse como o próprio moço pela interrupção em si. A partida repentina não impediu o meu sorriso na beleza da companhia e tudo mais. O que eu não imaginava era, algumas horas depois, já com a lua como testemunha, ouvir o vento e as ondas trazerem consigo a voz do meu vizinho murmurar a última passagem da história e uma verdadeira despedida, como só ele poderia fazê-lo.
08/08/2020
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigada pelo feedback!