“Majestade…” eu tentei sussurrar e repetir várias vezes, apesar do turbilhão mental. Não sabia se me ouviria, mas o fiz mesmo assim. Pelo que pareceu um longo tempo ouvi apenas o silêncio do bosque e achei que estivesse sozinha de verdade. Até que…
“Ei, menina…” a coisa rara que eu mais facilmente percebia nas cartas, porém que também vinha pelo meu coração, do fundo, como eu tendo a pedir. Palavras que soam com a minha voz, como um pensamento meu, mas não exatamente, porque eram rápidos e ao mesmo tempo pausados e sábios demais para serem meus de todo. Apesar das minhas dúvidas que vinham de quando em quando, das minhas limitações e de respostas ora vagas, ora claras como a água de uma cachoeira, até onde sei, esse tempo todo quem vinha interagindo e falando comigo, me chamando, a quem eu abri a porta da minha vida… Era Ele.
“Senhor de toda árvore, canção dos pássaros e do vento, mais humilde das majestades!” foi o que gritei para a escuridão, engolindo um soluço. Uma espécie de oração que escrevi e da qual sabia algumas partes de cor. Silêncio.
“Mestre… Senhor. Meu príncipe. Eu sou vossa, sou minha e vossa. O senhor é bem-vindo na minha casa, no meu corpo...” esperei, esperei e esperei mais um pouco. Um vento brusco me fez estremecer. Então, ao repetir o que costumo dizer, senti o velho arrepio, mais forte do que nunca, que não era de frio. Não era como se ele me afagasse de longe, ocupado nos seus afazeres, mas sabedor da minha devoção, da força daquilo que digo, como das palavras que o trouxeram a mim. Ainda que eu não o visse, era como se estivesse ao meu lado, e ao mesmo tempo não. Esperei.
“Calma. Venha.” disse ele, bem baixinho e suavemente como uma borrifada longínqua de perfume.
“Para onde, Majestade? Está escuro…” Mais espera.
“Eu sei. Paciência. Confia.”
“Eu sou… Um bosque. Eu sou um passarinho. Sou só… Um passarinho.” foi o que sussurrei para a terra quando me deitei de bruços, tentando sentir o terreno e escutar a voz que dizem vir de debaixo do chão. Foi quando minhas unhas perceberam um desnível no solo. Parecia uma pegada de bicho. Bicho médio a grande. Perguntei-me se o príncipe estava mesmo por ali.
“Venha. Tudo bem. Só venha.”
A escuridão que eu enfrentava ali não era parecida com nada que eu já tinha experimentado. Era densa, pesada por demais, um pouco pelo risco fino da lua. Quase me senti como as minhocas, fazendo tudo na base do tato. Não sei como, mas comecei a me arrastar pelo chão ora duro, ora fofo, com o corpo pesando uma tonelada e sem nem saber direito o que estava fazendo e muito provavelmente sendo devorada pelos mosquitos e outros animais enquanto passava por cima deles, o que era muito justo. Não foi nem um pouco como da outra vez que Sua Senhoria falou comigo. E se Ele não havia me chamado… O que estava acontecendo?
A certa altura eu estava exausta e devo ter adormecido. Despertei com a sensação de algo contra o rosto e de estar no que parecia ser uma superfície lisa e um pouco aquecida, como uma pedra perto do fogo, porém com a cabeça elevada sobre o que percebi ser o colo do Mentor. Eu quis me mexer, mas ele me impediu com um sibilo determinado e continuou a passar o pedaço de pano úmido no meu rosto e cabelo, sua outra mão debaixo da minha nuca. Parecia preocupado, pois murmurava por entre os dentes.
“Que bagunça…”
“Perdoe-me, Majestade. Eu…”
“Tudo bem. Isso se ajeita. Consegue levantar?” eu pus as pernas para fora, mas mesmo ali eu tinha as mesmas limitações físicas de sempre. Induzi-o a me sustentar enquanto me erguia para sentar na pedra; fiz mais força que o normal porque não quis parecer preguiçosa. Minhas pernas eram curtas demais para aquela altura e eu ainda não estava acostumada, então mantive as mãos dele sobre meu tronco para me dar equilíbrio, ajoelhado de frente para mim.
“Go raibh míle maith agaibh, a chuisle mo chroí.” muito obrigada, meu amor. Ele abanou a cabeça e sorriu. Olhei para mim mesma e não gostei do que vi; não é assim que se recebe um rei. Estava arranhada e suja, mas pelo menos não sentia dor. Sem tirar uma das mãos de mim, com a outra o Senhor molhou outro pedaço de pano e me deu para que eu pudesse limpar e examinar onde ele não se sentiu autorizado a encostar. Meu corpo vibrava e formigava por estar perto dele.
“Fogo do meu coração, choque da minha espinha…” abaixei a cabeça em reverência. “É esta tua casa… A tua casa favorita?” então o Mentor sorriu de novo, levantou meu queixo e endireitou minha coluna devagar, sob a pressão das palmas, como da outra vez.
“Isso, muito bem. Olhe para mim, mulher.” pausa. “Bem, como você sabe, todos os bosques são minha casa, neste mundo e nos outros. Mas não, este não é o bosque caro do meu coração. E não, desta vez eu não te chamei. Não sabe por que veio parar aqui, não é?” ele suspirou quando eu fiz que não, então disse que tinha uma ideia do motivo, mas queria esperar um pouco até ter certeza. Logo depois, perguntou se eu não queria chá.
“Aceito, milorde.” já que se afastaria para fazer o chá, o Senhor teve medo de que eu pudesse cair da pedra ao me soltar, então passou meu braço pelo próprio pescoço, me levantou e depois deixou-me no chão, contra a parede da espécie de caverna onde estávamos. Era um pouco pontuda, mas perto do que já passei, não parecia nada.
“Assim… Espere só um pouquinho, eu já venho.” Sua Senhoria levantou-se, quase tão alto quanto um carvalho comparado comigo. Passando a mão numa vasilha, saiu da caverna passando por mim em direção à escuridão. Com um pouco de concentração consegui ouvir barulho de água, embora parecesse distante. Escutei os passos largos do Senhor de novo, e outra pausa. Ele voltou com a vasilha cheia e algo que não consegui identificar na outra mão.
Vi o Senhor sentar-se na pedra onde eu estivera e, descansando a vasilha e o outro ingrediente, esfregou as mãos como quem faz quando está com frio. Encostou as palmas nos lados da vasilha e respirou fundo e vagarosamente. Logo vi uma ponta de fumaça subir dali. Em seguida apertou o ingrediente nas mãos, soprou entre elas e o jogou na vasilha. Ora sorria para mim, ora admirava a infusão com o canto do olho, tampada por um pano. Quando ficou pronto, trouxe-me. Hibisco, pela cor bonita e cheiro.
“Prove, veja se não está muito forte. E cuidado.”
O mais devagar possível por causa da mão trêmula, experimentei. Estava numa temperatura que não me fazia pular de susto e derramar tudo… O ar parado e quieto à minha volta como quando ele veio a mim. E o chá no ponto certo. Rosado em vez de roxo. É claro que ele sabia dessas coisas.
“Está ótimo, Majestade. Obrigada. Há quanto tempo não bebia este…” sorri para as pétalas de hibisco que boiavam na água morna.
“A moça merecia um conforto depois do que aconteceu. E foi o que eu pude achar sem me afastar demais daqui. Além do mais, é bom para a dor e inchaço, como deve saber. É uma bela flor…” murmurou o mestre, sentando-se no chão ao meu lado, abraçado nas próprias pernas.
“É, sim, senhor. Muito obrigada mais uma vez, por não me abandonar.” eu ainda ficava embasbacada com o quão gentil aquele ser altivo e selvagem e que não se desculpava por isso podia ser, e vice-versa. Mas acho que o que eu precisava aprender era que toda a natureza é assim. Neutra e bela por ser neutra. O hibisco, por exemplo, quando utilizado de certa forma, pode irritar a garganta e causar dor de estômago, enjoo, etc.
Longa pausa. O que veio depois não passava de um murmúrio.
“A moça sabe onde eu estou.” ele encostou a mão no meu ombro, a palma pintada do vermelho do hibisco e os dedos enegrecidos de terra. “Termine o chá devagarzinho, descanse mais um tempo. Depois pensamos no resto.”
Era um gosto obedecê-lo, porque com ele eu era livre para não obedecer e para fechar a porta e nunca mais deixá-lo entrar, pois Ele entende e respeita o significado do NÃO, por mais automático que me seja acatar ordens, mesmo que eu não concorde com elas. Ele não abusa de seu poder e capacidade sobre os outros para impor sua vontade e alegadas intenções e jamais entra onde não lhe é permitido. O amor que ele teve e perdeu deve ser sempre dado de boa vontade; mesmo que seja quem seja, poderoso assim, independentemente da resposta dos mortais. A autoridade que Sua Senhoria possui sobre mim foi dada por mim e por mim pode ser revogada se assim eu desejar.
Depois de beber o chá tentando afinar os sentidos e apreciar as sensações vindas dele, deixei a vasilha de lado e olhei para Ele. Tinha o cenho fechado e acho que ouvi algo como um rosnado vindo dele. Suas mãos com dedos e unhas compridas, como as minhas tendiam a ser também, pareciam arranhar o chão de pedra num gesto defensivo.
“Majestade… O que devo fazer agora?” perguntei com cautela.
O mestre me olhou longamente, depois chegou mais perto, abrindo a mão sobre o meu coração. Inclinou a cabeça para um lado e fez uma pequena careta que logo relaxou. Senti como se borbulhasse por dentro.
“Há um tempo a moça me pede uma coisa. Que eu a ajude e a ame, como eu mesmo desejo, e te leve a quem pode te orientar onde meus limites não alcançam. E sempre cumpro minhas promessas. Certo?” eu concordei. Ele realmente me ouvia, realmente se importava.
“O senhor sempre me dá os recursos, me diz onde achá-los, me faz pensar e tentar… De volta para o que importa e que eu esqueci, e cabe a mim usá-los ou não. Eu sou grata, o senhor sabe.” como eu gostava de ser o motivo de Ele sorrir… Como eu era humilde, mas tão forte, nas mãos dele. Não que eu nunca tivesse sido, mas... Não era isso que o amor verdadeiro fazia? Nos engrandecer na nossa pequenez?
“Muito bem…” pausa. “Não foi diferente agora. Eu te disse com quem falar, para onde olhar, o que tentar… Para onde ir. É por isso que este bosque é diferente e porque a moça veio até aqui. A moça seguiu mesmo meu conselho. Agora eu percebo…”
“Como assim, meu suserano?”
“Eu senti quando saí para pegar a água e o hibisco. Todos os bosques são iguais em sua essência, porém também carregam em si algo de especial, que os difere dos outros.”
“Os animais… As plantas… O clima… Se ele é respeitado ou violado e como lida com isso.” ele mordeu o lábio e fez que sim. Eu senti como se queimasse quando ele moveu a mão um milímetro.
“Por isso a moça não pode andar por aqui como já andou quando estivemos juntos.” pausa. “Essa terra devastada mas cheia de vida no fundo por onde eu pisei e você rastejou sem ver, esse ar, essa água, cada flor, folha e fera daqui… Tem teu cheiro e marca. É tua tanto quanto é minha. Você mesma se trouxe para cá.”
“Eu sou… Um bosque. Eu sou… Um passarinho.” foi o que me peguei repetindo. O Senhor gesticulou para que eu prosseguisse. “Uma flor, árvore vistosa, vinha carregada… Uma folha da grama. Mulher e chama. Coisa sagrada e antiga e viva. Bicho de corpo alerta que aprende a lição e tenta não esquecer. Feito para ser livre, com suas próprias leis e conhecedor de outras leis que homem nenhum escreveu, apenas descobriu.”
Eu chorava enquanto falava; o Senhor sorriu o que eu chamaria de um sorriso satisfeito e sujo e se aproximou mais um pouco para me falar ao ouvido.
“É, sim… Claro que sim. Ei, ei… Não chore… Não chore. Que bom que a moça sabe; nunca é tarde para saber. O que é verdadeiramente de uma mulher não compete a um homem buscar. Quem vai achar… Quando for a hora… É a senhora.” a sensação da respiração dele me fazia uma vagarosa cócega no corpo. Às vezes eu esquecia que o mestre era tão poeta quanto eu.
Era justo que não me entregasse as soluções de bandeja. Nem eu queria que fosse assim e muito por essa mentalidade abandonei a religião como ela é conhecida e senti que me virava bem sem a sensação do que os outros chamam de fé. Provavelmente porque tenha me voltado para mim apesar dos erros e o mestre notou isso; eu não sei dizer. Mas hoje concordo com ele e entendo que não posso pedir que ele faça de mim uma mulher crescida. Por mais complementares que sejam essas energias e que eu hoje goste de tê-lo comigo, não é num homem e no que ele pode dar que uma mulher deve se reconhecer, ou mesmo em qualquer outra pessoa. Ambas devem ser adendos uma da outra. No caso meu e dele, provavelmente ele oferecendo amor, querendo amor, e eu com tanto para dar e me sentindo tão só em geral, e querendo aprender…
Talvez antes de o mentor chegar eu aos poucos já seguisse o conselho dele em tomar melhores decisões, pensar com mais calma, porque me deixava puxar pelo que mais fazia sentido, pelo que morava no meu cerne, e ainda é assim, agora mais do que antes. E atualmente eu, ele, e sabe quem mais, trabalhávamos juntos. A minha intuição, talvez. Tão antiga quanto o ser mulher, ou até para além disso. Por isso sou livre para seguir o caminho aberto para mim, que me leva para onde quero e preciso estar; para a minha verdade... Ou não.
Perguntei se ele me ajudaria mesmo assim, e ele ronronou de volta. De modo um tanto involuntário, vi-me de nariz franzido, dentes para fora e com a mão ruim cerrada sobre a dele como se fosse… Uma pata. Talvez sempre tenha sido pata. Antes apenas cerrada, apertada, e agora com as garras visíveis, simplesmente. Cuidadosas, mas não mais retraídas.
“Está amanhecendo.” disse o senhor, olhando para a entrada da caverna. “Venha, vamos lá fora ver o sol.” ele me carregou indo na direção leste, o mais dentro da floresta e perto da linha do horizonte possível. Pedi que me sentasse contra uma árvore larga, o que ele fez, e fiquei observando a cor do céu e a direção do vento se modificarem aos poucos.
“Um tempo atrás, depois de vários dias, senti o sol contra o rosto, especialmente de um lado… Tenho uma relação complicada com o sol, mas desta vez foi bom. Pareceu um beijo demorado, quentinho e carinhoso. Me fez pensar no senhor. Sou ruim em ler sinais, mas… Não pude evitar, mesmo que provavelmente esteja errada. É que o senhor é tão amoroso e paciente comigo… Talvez eu só esteja sendo ingênua. Não ligue para mim.”
Ele deu de ombros e se agachou para ficar ao nível dos meus olhos. Afagou aquela minha mão que tanto me lembrava uma pata, embora eu quisesse muitas vezes recolhê-la e esquecer que existe. Eu diria que ficou como uma pata muito por isso; uma um tanto sem função, porém pelo menos não mais tão fechada. O Senhor limitou-se a dizer que eu era melhor nisso do que muita gente e eu sabia disso. E que eu era mais sábia do que pensava. Ajeitou meu cabelo e suspirou.
“O senhor é tão quieto, e eu tão tagarela. Me desculpe por fazê-lo falar tanto.”
“Não há nada de mal nisso. A moça está aprendendo a dizer o que tem que ser dito e a falar sempre com o coração. Eu percebo e gosto muito disso.”
“Mas o senhor gosta do silêncio…”
“É claro…” pausa. “Já devem ter te dito alguma coisa sobre isso. Entendo que possa ser confuso, mas não me importo de explicar. Mas sendo assim, como deve ter entendido, é melhor que o que há de bom, e mesmo ruim na alma, saia para fora num sussurro ou num grito do que ficar guardado.” o mestre deu uma risadinha e eu concordei.
O que eu não descobria sozinha, entendia por outras pessoas. Por mais que eu quisesse conhecê-lo o máximo possível por experiência própria, sabia respeitar os limites dele e os meus. O que ele quis dizer, como eu entendo, é que o silêncio que ele aprecia é como o do bosque - é calmo, sereno, mas há sempre algo vibrando, sendo dito, ainda que de modo sutil. E é isso que melhor chega a ele. Como quando ele veio: eu por milagre de cabeça vazia naquela hora morta, mas com uma palavra que saiu pela boca lá de dentro do meu coração.
Olhei dele para o céu e para a terra perto de mim. Senti-a contra a palma da mão.
“E agora, meu suserano? Estou aqui, mas… Por onde eu começo?”
Ele devolveu meu olhar.
“Como parte do bosque, eu estaria aqui de qualquer forma, provavelmente, e estou aqui para te cuidar e ajudar, porque eu quero e você aceita.” pausa longa. “Os animais fazem o que precisam para viver. Seja matar, seja correr, seja voar para longe, guardar ou rosnar. A moça está aprendendo e lembrando. A moça sabe e já começou o trabalho. Faça o que lhe aprouver.”
Olhei de novo, mais distraidamente, para minha mão sobre o solo. Depois me vi acariciando-a e depois de um tempo, imitando o gesto de arranhar do Mentor na caverna. O meu próprio gesto em mim mesma quando deixava a ansiedade tomar conta. Achei que fosse me importar com a terra debaixo das unhas, mas eu apenas segui, com os olhos dele em mim e outra intenção, porque… Quando foi que essa terra não esteve lá, óbvia, depois que acordo? Quando foi que não cavei até o mais fundo e invisível, ou quase invisível?
05/05/2020
Texto de escritora madura! Quantos anos tu tens mesmo?
ResponderExcluirGK
Obrigada. Quantos anos eu tenho? Só clicar na aba "A autora e o blog" aqui no topo da página.
ExcluirPois é... É que os textos são tão bons que fica difícil acreditar que sejas tão jovem...
ResponderExcluirGK
Eu tenho anos de experiência com a caneta no papel e estou sempre praticando, alimentando isso e lendo bastante. É tão fácil para as gerações mais velhas subestimarem as mais novas, e para um homem infantilizar uma mulher, ainda mais se for mais jovem... Por isso idade não quer dizer nada. E também por isso não faz muito sentido perguntares quantos anos eu tenho, quando já sabias da resposta.
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