segunda-feira, 8 de julho de 2019

Memento mori

- Pra ser sincera, você está certo e não, não sou. Pelo menos não em parte. A gente sabe que fica nos assuntos mais óbvios por timidez, por falta do que dizer numa hora dessas. Mas eu gosto de fazer diferente de vez em quando. – Eu o vi sorrir e não pude não sorrir também. – Sendo assim, fale-me das estrelas...
Andrew gesticulava no tampo da mesa e em volta do copo de cerveja enquanto falava do iminente afastamento gravitacional da lua com relação à Terra e das estrelas umas das outras, o que em algum ponto do tempo fará com que tudo, inclusive nosso planeta, volte à estaca zero de frio e escuridão, com o sol nos engolindo até que ele próprio exploda. Houve um silêncio um pouco pesado depois que ele acabou a explicação.
- Não sou nenhum especialista no assunto, mas posso te recomendar um livro da cientista que descobriu tudo isso... – ele sussurrou levantando o olhar na minha direção.
- Claro, obrigada! Mas... Não parece triste que tudo o que temos simplesmente termine assim, escuro e gelado?
- Talvez, mas não seria tão diferente assim da morte de um ser humano ou de um animal. Perdemos consciência, os sentidos, a temperatura do corpo, e com isso nos desfazemos. Somos tomados por isso. Com a morte do calor a coisa seria em larga escala. Mas não se preocupe. Independentemente do que disse antes, é provável que nenhum de nós esteja aqui quando isso acontecer. Pelo menos não como nos vemos hoje, ou talvez de jeito nenhum.
- O que não te impede de achar que morrer no meio do apocalipse enquanto faz amor seja romântico, certo? – senti meu rosto corar outra vez.
- Não. Se a morte e também o amor forem as minhas únicas certezas naquele momento, não. Aos meus olhos, estar apaixonado, principalmente quando somos correspondidos, e também o sexo, em suas devidas diferenças e semelhanças, são em si mesmos tipos de morte e de renascimento. Não somos mais os mesmos depois disso. E se o mundo acabasse agora, é assim que eu escolheria partir.
- Memento mori. Carpe diem.
- Exatamente! – ah, aquele sorriso... – Vem coisa muito pior a caminho. E já que vamos mesmo morrer e nenhuma das nossas preocupações ou tristezas fará sentido ou continuará existindo, talvez o que nos resta seja simplesmente desfrutar. Beber café, comer um doce, amar alguém. Vale viver por isso.
- É verdade. Com certeza vale a pena viver por chocolate! – Andrew concordou efusivamente. Eu também sabia o que era de certa forma morrer depois de uma paixão.
Aos poucos mudamos de assunto e ficando mais confortáveis perto um do outro. Para ser honesta, muito porque era ele quem fazia com que isso acontecesse. Dono de um lindo carisma, bom humor e articulação, senso de abertura, a maneira suave de falar, seu... Calor. Até quando Andrew colocou um pedaço de papel dentro da minha mão com o título do livro de astrofísica a que havia se referido mais cedo e beijou meu rosto em despedida, tudo nele era quente e agradável.
Porém só consegui de fato ter noção de que achar isso fazia sentido e de entender os termos técnicos que ele havia timidamente usado quando o rapaz se afastou de mim na porta do bar. Embora fosse uma noite de verão, de repente eu estava sozinha, gelada, encolhida sobre mim mesma e tremendo. Como se o sol tivesse se apagado...

24/06/2019

- exercício de continuação desta cena

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