Conforme andava pelo mercado, era
cumprimentada por muita gente, já que o povo a conhecia como uma moça gentil e
de fala muito mansa que fazia o que podia pelos que lhe pediam ajuda,
intercedendo ao paradoxalmente generoso e inflexível rei, o seu pai. Naquele
dia ela andava acompanhada de uma de suas amigas, que era filha de uma família
nobre, e da serva que havia cuidado dela desde bem pequena junto com sua mãe.
- Sua Alteza já está moça, não
fica bem andar assim. – resmungou a criada.
- Assim como? Por acaso estou
pela rua sozinha, ou tarde da noite? – indagou a princesa. – Só quero minhas
florezinhas e frutas. Que mal há nisso? Além do mais, é bom que as pessoas
conheçam sua realeza para que possam contar com ela.
- Mas a Princesa cresceu e logo
vai embora... – a voz da criada soou maternal chorosa, como se Bianca já
estivesse muito longe dali. Ela estacou onde estava de braços dados com sua
amiga, uma jovem duquesa por nascimento, e olhou para a mesma com expressão
interrogativa no rosto franzido.
- Minha mãe ouviu falar que Sua
Majestade, o rei, decidiu que você já está em idade de se casar, então escreveu
cartas aos reinos e principados próximos para que mandem seus herdeiros como
pretendentes oficiais e que venham o mais rápido possível. – Sussurrou a
duquesa. – Isso não é ótimo?
- Não quando eu sou a última a
saber. E para quando os tais pretendentes são esperados?
- Semana que vem, no dia do seu
próximo aniversário, quando será dado um grande banquete anunciando que em
breve você ficará noiva. Metade da população já especula que os mais ricos
príncipes brigarão pela sua mão, já que minha Princesa e grande amiga é
considerada o partido ideal! – a duquesa curvou-se de leve, com o rosto corado
e uma risadinha brincalhona escapando nos lábios.
- Sua Graça está certa... Por
mais que me doa ver a Princesa partir, temos que rezar e fazer a nossa parte
para que tudo dê certo e Dona Bianca arranje um bom casamento... – disse a ama,
afagando a cabeça da princesa.
Embora soubesse que, mais dia,
menos dia, isso aconteceria, a mente de Bianca começou a girar e ela ordenou
que não mais se falasse no assunto. Ela descobriria mais quando voltasse para o
castelo, mas agora só queria um ramo de alecrim para lhe dar mais foco e
clareza para o que viria adiante; já que muito provavelmente seu dote a um
futuro marido incluía as terras férteis e belos palacetes que já eram seus por
direito, não duvidava que seu casamento fosse outro dos muitos casos de mero
acordo financeiro selado com a mistura do sangue de duas casas reais em laço
matrimonial. Era de se esperar, mas não deixava de ser triste. Sempre ouvira
falar que sua mãe aceitara o pedido de casamento do rei por amor, então
desejava pelo menos conseguir ter o mínimo de respeito e consideração por seu
esposo.
Dona Bianca separou-se um pouco
de suas acompanhantes e caminhou alguns metros à frente até uma banca onde uma
simpática mulher de meia-idade vendia ervas e flores, de quem comprou o sonhado
maço de alecrim. A vendedora sorriu, agradeceu e lhe desejou sorte,
aconselhando-a a guardar um dos raminhos em separado e colocá-lo em seu buquê
de noiva. A princesa guardou silêncio, acenou com a cabeça e, olhando um
instante para trás, dirigiu-se à banca ao lado, onde vendia-se frutas.
- Boa tarde! Suas laranjas
parecem bonitas... Por acaso você tem uvas também? – ela perguntou, sem tirar
os olhos da mercadoria.
- Laranjas bem doces e as uvas
favoritas de Sua Alteza. Boa tarde para a senhora. – respondeu uma gentil voz
masculina coberta de registro gutural, que mesmo rompendo o ar com leveza não
evitou que Dona Bianca se assustasse um pouco.
- Oh! Como você sabe?
- Um passarinho azul foi até a
corte e me contou. – Murmurou o rapaz, que logo fez uma mesura com as mãos às
costas. – Perdoe-me se lhe assustei, madame.
- Está perdoado. – Bianca
devolveu a mesura rezando internamente para um dia, quem sabe, não ser mais tão
assustadiça como um gato. – Três laranjas destas e o seu cacho de uva mais
vistoso, por favor. – pediu a princesa, que se pegou rindo do senso de humor do
moço quando ele se agachou de costas para ela para apanhar uma sacola onde
carregar as compras e as uvas, que ficavam conservadas no gelo.
- Aqui, madame... Suas uvas e uma
sacola... – ele soou tímido de repente, o corpo um pouco retraído. – Estão
geladas, se não se importa. Assim, permanecem frescas... Talvez queira chamar
sua aia...
- Não será preciso, obrigada! Já
tenho onde levar tudo. E é justo que estejam no gelo, assim como os belos
buquês de rosa que eu costumava ver por aqui. – Dona Bianca indicou a bolsa que
levava a tiracolo, onde já estava seu alecrim, e estendeu a palma direita ao
jovem.
- Eu acredito, Alteza. – Ele sorriu,
e a princesa percebeu que era um sorriso de criança, como de um menino. Aquilo
infectou a princesa, que pensou consigo que há muito não via um homem que
sorrisse assim. – Por conta de Andrea, seu leal criado. – Os olhos de Andrea
puxaram os de Bianca por um instante, logo antes de ele abaixar o olhar e a
cabeça quando seus dedos compridos roçaram aquela mão consideravelmente menor
que as suas.
A moça fez que não com a cabeça,
deu uma breve olhada no cacho, guardou-o na bolsa e, com a mão esquerda, sacou
duas moedas de ouro de uma fenda no corpete do vestido para entregar a ele.
Andrea tentou recusá-las.
- Não mesmo. Eu faço questão.
Dois ouros pelas suas lindas frutas. – Aceito o pagamento, seu rosto se
iluminou e sua voz soou leve, jovem e brilhante. – Agora me diga quais laranjas
estão mais doces, por favor.
O fruteiro guardou as moedas no
bolso do colete que ficava perto do coração e indicou que tinha quase certeza
de que aquelas que se reuniam na fileira mais perto de Bianca estavam
particularmente doces e suculentas. Deixou que ela apanhasse as que desejasse e
sussurrou que adoraria saber se foram do agrado da princesa, quando e se ela
aparecesse no mercado outra vez.
- Ou talvez por um criado... Se
não for muito atrevido da minha parte, é claro... – o rapaz tinha os cantos da
boca curvados para cima num apertado sorrisinho sem dentes.
- Não, não... – murmurou Dona
Bianca num fio de voz. Ambos se despediram com uma última mesura e logo ela
saiu para procurar a duquesa e a aia, que já estavam fora do perímetro do
mercado normal, o que a fez demorar um pouco na busca.
Como encontrou-as entretidas
entre sedas, brocados e rendas delicadas numa loja logo atrás da banca de
Andrea, perguntou em tom jovial se alguma delas precisava de um vestido ou xale
novo, sorrindo a quem se curvava em saudação.
- Claro que preciso de roupa
nova, Dona Bianca! – exclamou a amiga da princesa. – Não é todo dia que se é
convidado para um casamento real. – sua empolgação foi contida quando Bianca
sibilou em desaprovação com um dedo aos lábios. Não havia mais ninguém na loja
além delas e dos vendedores, para alívio dela.
- Alteza! Por que demorou tanto?
Se eu não tivesse que acompanhar a duquesa também, teria ido atrás da senhora
imediatamente... Nada disso é de bom tom. – disse a aia. – Imagine se a rainha
ou a duquesa descobrem ou desconfiam que não cumpri meus deveres!
- Ora, não exagere, minha
querida, o sol ainda não se pôs. E eu estava sendo gentil e educada com quem me
vendeu as frutas, como você e minha mãe me ensinaram. E estou feliz com o que
consegui. Olhem só que beleza... – Bianca abriu a bolsinha e puxou dela o cacho
de uvas ainda gelado.
- Ah, parecem ametistas ou pedras
de ônix, bem grandes e escuras! – admirou-se a duquesa, que trazia sobre o braço
um pedaço de veludo. – Onde conseguiu estas?
- Naquela banca logo atrás daqui;
as frutas dali me pareceram todas muito boas, o rapaz ainda deve estar lá... –
a princesa indicou com a cabeça a direção de onde viera e esticou o pescoço
para ver se encontrava Andrea em pé ou descansando sentado no banco alto que
havia visto antes.
Mas ele já devia ter ido embora. Por
algum motivo, tudo o que viu foi espaços vazios onde estavam as laranjas e
nenhum banquinho, caixa ou mochila atrás da tenda. Sobre o pedaço de tampo liso
da armação de madeira, percebeu apenas uma longa e bonita pena de pássaro, azul
escura. Escura como o vestido também azul que ela própria usava, que tinha
flores brancas com detalhes em azul claro aqui e ali ao longo dele todo, mesmo
nas mangas; flores bordadas à mão. Como as uvas que segurava, em cacho que caía
gracioso sobre si mesmo em espelho ao cacho moreno de Andrea, que nele ia até o
queixo.
Ainda restava algum tempo até que
o jantar ficasse pronto e o rei voltasse de suas reuniões com os lordes e
conselheiros da corte, então Bianca decidiu passá-lo em seu velho esconderijo
de infância comendo as frutas e pensando no que dizer a ele. Quem sabe não
teria algum tipo de voz no processo. Mas, considerando que era o milagre, a
única herdeira daquele reino, algo dentro dela a fazia duvidar que as coisas
andariam minimamente a seu favor.
- Fui criada apenas para ser
consorte e entregar meu reino a quem oferecer a melhor barganha, não para
governar de verdade... – ela sussurrou para o vazio. – Isso pode dar muito,
muito errado.
No entanto, as uvas que comprara
de Andrea estouravam tão fácil na boca e eram tão diferentes de tudo o que já
havia experimentado, que parecia haver algo nelas que aos poucos esvaziou e
acalmou os pensamentos de Dona Bianca, fazendo com que ela conseguisse realmente
caber dentro do espaço mais ou menos estreito, mas alto e de grande comprimento
atrás do retrato de corpo inteiro de uma antepassada na parede leste de seu
quarto. Quando chegasse a hora certa, voltaria a ser filha e saberia de tudo.
Mas não agora.
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