De quando em quando eu penso no arquétipo do Sem-Pernas de Jorge Amado e em como o autor tenta entrar na cabeça da personagem e percebo que entendo completamente sua raiva contra o mundo e principalmente de si mesmo em alguns aspectos.
Do mundo por ter sido abandonado e ter ido morar na casa de alguém que o espancava. De tudo o que o obrigou logo cedo a ter de se virar do melhor modo que pôde com o ônus da limitação física no meio de outros meninos cujo corpo não lhes dificulta mais a vida. De precisar roubar e fazê-lo na casa de pessoas que em sua grande maioria não sentiam mais que pingos de pena dele. Ninguém precisa de pena, muito menos alguém como eu ou Sem-Pernas.
De si mesmo por conta da deficiência e usá-la como facilitador para enganar a única pessoa que talvez pudesse dar-lhe o amor que ele não teve. De alguns dos outros meninos com seus preconceitos velados ou talvez nem tanto assim... Cada um tem os seus e nos resta trabalhar neles, é verdade, mas não significa que não causem menos mal ou que não possam ser notados. Raiva também dos policiais, por tentarem levá-lo embora como fizeram com Pedro Bala para ser tratado pior que um animal no corte da cana passando ainda mais necessidade.
Mas ninguém aprisiona um Capitão da Areia e sai impune. Sendo um, Sem-Pernas teve um pingo da liberdade que todo mundo merece apesar de tudo o que eles precisaram sofrer. A mesma liberdade que não os impediu de desejar uma vida com uma casa, comida na mesa todos os dias e o carinho de uma boa família. Os extremos a que ele chegou são prova de que ainda mais para pessoas como nós, é preferível morrer a saber que não se teve uma vida, que não se lutou pelo que sabia que merecia, mesmo nunca o tendo recebido. Se não foi amado, poderia ser temido e isso era melhor do que nada.
Além do mais, o mundo é mesmo cruel e no fim das contas só nós sabemos o que tal mundo faz conosco. No fundo lidamos sozinhos com tudo o que vem com a deficiência porque é conosco que ela acontece. Para alguns é mais fácil, outros mais difícil. A raiva e a depressão podem acontecer com qualquer um por tudo o que nos traumatiza, amedronta e entristece. Eu mesma já passei por períodos turbulentos que achei que nunca aconteceriam; talvez não pela deficiência em si, mas por coisas que vieram junto com ela, mesmo sempre tendo encarado tudo suavemente, de modo geral.
Talvez eu tenha aprendido isso sozinha, não sei dizer. Só sei que ser assim tem um lado bom, mesmo eu não sendo imune a essas sensações, e que para algumas pessoas é bastante difícil, de verdade. Muito por causa do desconhecimento tanto daqueles à nossa volta quanto às vezes de nós mesmos. Eu mesma só há pouco tempo descobri características gerais sobre casos como o meu de que nem fazia ideia e venho tentando passar isso para aqueles que convivem comigo. Não sei se serei completamente ouvida, mas é melhor do que não dizer nada...
Enfrentar tudo isso e olhar para si e para o mundo ainda com vontade de viver é uma batalha a cada manhã e eu me orgulho disso – ainda mais com meu histórico de ansiedade e princípio de depressão. Mesmo as pessoas com deficiência que têm uma família que lhes auxilia a lidar o melhor possível com tudo isso podem passar por algo similar porque todos somos humanos e complexos.
Isso só me faz querer abraçar o Sem-Pernas e dizê-lo que tudo bem se enfurecer às vezes e ficar triste com o nosso redor; todos nós temos esse direito. Mas que o que mais dói e jamais deveria acontecer é termos ódio de nós mesmos – principalmente pelas coisas das quais não temos escolha ou controle. E que tenho orgulho dele por ter feito por si mais do que eu por mim mesma até hoje.
Eu também mereço me sentir livre e agora que sei que posso realmente alcançar isso, tomara que nada no mundo me impeça de chegar lá.
15/10/2017
Letícia Bolzon Silva; graduada em Relações Internacionais pelo Centro Universitário UNINTER e Especialista em Tradução de Inglês pela Universidade Estácio de Sá. Escritora de prosa e poesia, redatora e tradutora freelancer.
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