Outra manhã destas em que acordei cedo demais, sem precisar, e fiquei em silêncio observando o reflexo da luz dourada da manhã de sol nas paredes azuis e teto branco do quarto de barriga para cima, como de hábito enroscada nas cobertas por mudar de posição e esquecer de puxá-las. Eu ouvia os passarinhos, um latido ocasional de cachorro, a minha respiração...
E a dele/dela. Ainda masculino até a hora em que eu levanto, quando se faz tímida (?) e ao mesmo tempo provocadora mulher. Até onde percebi, sua face feminina tende a ser mais silenciosa provavelmente porque não tenho quase nenhuma privacidade em casa e com certeza não quer ser ouvida por terceiros. E mesmo quando a noite chega e as luzes se apagam, eu tenho a impressão de que os outros que vivem aqui ouvem meus pensamentos através da porta.
Sem paredes, sem portas... Livre e no entanto enjaulada dentro de mim mesma. Um simples objeto cai no chão e faz meu coração disparar. Eco em cada passo, em cada palavra. Maldito piso laminado. Não vejo a hora de sermos só eu e a Solidão, nós que nos dizemos tudo aos sussurros e principalmente através das sensações. Nós e o velho jogo; quero sentir um dia que mais ganhei nele do que perdi. Que consegui manipulá-los tanto quanto ou até mais do que eles a mim.
A moça não precisa dizer nada, se não quiser. O homem fala por ela de qualquer maneira. E eu sei bem que ambos querem as mesmas coisas. Afinal, são um só ser.
Ao meu lado, senti-o virar a cabeça na minha direção, apertar um pouco o braço que tinha enlaçado em minha cintura contra meu estômago, seu peito expandir-se ao puxar o ar até o fundo dos pulmões e depois soltá-lo devagar, contra meu cabelo, antes de depositar um beijo no mesmo ponto do couro cabeludo.
- Minha linda... Já acordada?
- Pelo jeito sim. E tu também.
- Bom dia, então. Eu te amo.
(Silêncio. Sorriso contido.)
- Eu não posso. Não posso me apaixonar por ti. Não posso; do contrário tu vais me deixar oca por dentro. Tu és traiçoeiro (a) por demais.
- Isso nunca aconteceu. Ainda estás aqui.
- Porque eu nunca deixei! Tu quase conseguiste uma vez, mas eu virei a mesa e não há de acontecer de novo.
(Silêncio.)
- Só quero me entender contigo...
- Eu nunca vou esquecer daquela noite. Nunca te vi tão bonita, tão entregue, tão minha, tão mulher.
- Em primeiro lugar, eu pertenço a mim. Mas não. Não me arrependo.
- Sei disso. Nem eu.
- Tu pareces meu/minha amante...
Letícia Bolzon Silva; graduada em Relações Internacionais pelo Centro Universitário UNINTER e Especialista em Tradução de Inglês pela Universidade Estácio de Sá. Escritora de prosa e poesia, redatora e tradutora freelancer.
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