sábado, 4 de julho de 2020

Jornada do equilíbrio III

No inverno, o frio nos força a nos cobrirmos para reter o calor; em nos fazer em mais camadas exteriores do que já possuímos numa situação geral e até ideal. Também nos induz, ou pelo menos induzia, a ficarmos mais perto uns dos outros, a nos resguardarmos e encontrarmos outras maneiras de sentir o tempo que passa. Dependendo da situação, parece que nenhuma roupa ou coberta consegue aquecer... Nem por fora, e, às vezes, nem por dentro, e honestamente não sei dizer o que é mais triste.
Somos feitos de muitas camadas, tanto no corpo como na psique e, assim como os selkies, conforme se faz necessário ou dita nosso desejo, nos desfazemos temporariamente de alguma ou algumas delas para que outras partes de nós possam ser mostradas. Mas o povo selkie sabe que sua camada talvez menos óbvia é também a mais importante para si e a mais preciosa em si mesma e até como valor de mercado, pois os faz aquilo que são simplesmente sendo, acima de qualquer outra coisa, e também moldada de acordo com o jeito de cada um... E nunca esquece onde a deixou antes de voltar para casa, porque não há como estar em casa sem ser tudo o que se é e escolhe ser – seja essa casa um lugar ou o sagrado templo do corpo.
Mas essa casa também pode não ser onde pensamos que é, ainda que tenha sido por escolha nossa ou falta dela. Escolha de experimentar algo que parece bom e que com o tempo nos mostra que merecemos mais... Ou uma mais inconsciente, talvez, e eu diria dormente, de ficar onde não há a luz estalada do fogo em conjunto porque dizem que certas peles bastam... Ainda que ela não seja a nossa pele em primeiro lugar, talvez nos escondendo de nós mesmos e do mundo. Que não seja a do animal que vive em cada um. Da foca que uma linda moça e rapaz selkie nunca deixa de ser.
Nos vestem seja com o que está ao alcance, com o que acham que nos convém... E a gente acredita naquilo, seja a vida toda, seja só por um tempo, porque, querendo ou não, contanto que nos cubra, não mostre aquilo que temos ou julgamos ruim (ou mesmo que os outros julgam assim) e cumpra sua função mínima no inverno e verão, não nos importamos muito ou de jeito nenhum. Mesmo que fique talvez mais largo ou apertado do que deveria, seja de uma cor que não exatamente gostamos ou nos favoreça e/ou seja de um tecido que incomode de alguma forma – coisa que muitos demoram ou nunca chegam a perceber e em alguns casos percebem, porém não modificam, por medo da mágoa do outro.
Mas tem coisa melhor do que estar em casa? A casa que se tem, a casa que se fez, a casa que se é? Com tudo o que se gosta, com tudo o que se sabe, quer e precisa? Olhando pra si, no corpo e na psique, e nos reconhecendo na beleza serena talvez não das nossas imperfeições em si, mas no fato de elas estarem ali por serem normais. E nos reconhecer na nossa forma debaixo de qualquer camada – seja na pele exposta pelo verão que nos descasca e quando nos vestimos de céu quem sabe em mais de um sentido perante o divino e o amor verdadeiro, seja na que temos de que às vezes só a lua sabe, seja a nível ainda mais profundo... E uma roupa que reflita por fora, de verdade, um pouquinho do que somos por dentro. Que nos caia bem, que valorize o que nos foi dado, que não nos aprisione. Às vezes tudo começa por aí, e todos merecem essa chance. Eu bem espero pela minha.

01/07/2020

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