Pela janela, Andrea ouvia os cortejos fúnebres de Bianca, feitos com a pompa e circunstância dignas de uma princesa coroada. Após uma breve cerimônia religiosa, o corpo foi levado para ser sepultado no cemitério particular que ficava nas terras do castelo. Parte dele desejava ir até lá e consolar a rainha, mas ele sabia que não era possível. Alguns dos príncipes e rapazes nobres que andavam frequentando a corte para quem sabe serem escolhidos como esposo de Bianca estavam presentes; a maioria carrancuda por não terem tido a oportunidade que ele teve de conhecer minimamente um coração e mente como os dela, outros provavelmente por terem de voltar para casa sem uma noiva a tiracolo e um dote no bolso. Isso pareceu a Andrea um sinal de que os primeiros eram boas pessoas, no fim das contas. Pelo menos era nisso que ele escolhia acreditar.
Junto com o sol que se punha, nuvens carregadas do sul logo deixaram a cabana de Andrea no escuro e se aproximaram de onde o funeral acontecia para deixar a atmosfera ainda mais pesada. A última prece era dita pelo sacerdote e as primeiras pás de terra preta eram depositadas sobre o caixão de cerejeira enquanto Andrea se postava frente ao altar de sua antiga mentora e queimava um incenso pensando nela; pedia-lhe perdão pelo que havia feito e havia de fazer. Tentava consolar-se com o fato de que a escolha final tinha sido de Bianca, que ele não a forçara a nada. Ele conhecia as leis e não tinha medo de pagar seus preços.
O barulho das folhas nas árvores, o cheiro delas e os gritos das mulheres indicavam que uma tempestade estava a caminho; Andrea deixou que viesse para varrer a casa, purificar a aura ali dentro. A corte mal teve tempo de encerrar a coisa toda antes que o primeiro relâmpago ribombasse no céu. Ele ficaria quieto, esperaria… Assim que tudo o que pudesse ouvir fossem as corujas e talvez o tilintar reconfortante de um chuvisco, ele cumpriria a promessa e buscaria Bianca do fundo da terra antes que fosse tarde demais.
A hora propícia chegou e ele saiu da cabana com uma pá numa mão, uma coberta de lã na outra (tentando o máximo possível mantê-la seca) e envolto numa capa de frio mais para evitar que lhe vissem o rosto do que para abrigar da chuva que já não era tão forte, porém recusava-se a cessar. Ficou ensopado nos poucos minutos que levou para analisar o lamaçal sobre o túmulo e encontrar um jeito de penetrá-lo e com o tempo que passava começou a tremer de frio e esforço, mordendo a dor nos braços e mãos junto com os lábios. Tinha que ser o mais rápido possível para que nenhum serviçal o pegasse.
Não conseguiu evitar acariciar as pontas mais próximas de si do cabelo de Bianca que escapavam da mortalha sobre o rosto dela quando finalmente abriu o caixão. Assim que pôde recuperar o fôlego, tomou um gole da velha poção apenas por garantia, abaixou-se e deixou um beijo na moça, um como das primeiras vezes. O coração de Andrea batia rápido na expectativa de que o processo funcionasse e quase saiu pela garganta quando olhou em volta e depois para Bianca e notou que ela franziu a testa e mexeu os olhos e alguns dedos da mão rapidamente, como alguém faz em estado de sono profundo, tendo sonhos. Pelo jeito ela era tão forte quanto ele imaginava e logo estaria totalmente de volta da escuridão.
Envolveu-a no cobertor e tentou tirá-la com cuidado do caixão e sem tropeçar. Primeiro depositou-a próximo à beirada da cova. Tampou tudo e assim que possível colocou a terra enlameada de volta, ouvidos atentos a qualquer movimento. Como ainda chovia provavelmente ninguém repararia que o túmulo recente havia sido remexido. Respirou fundo outra vez e levantou Bianca da grama apertando-a mais no cobertor e contra o peito, embora agora estivesse basicamente molhado e sujo como um gato sem dono. Ria para consigo da sorte que tinha. A princesa pesava um pouco por causa do cansaço do próprio Andrea e de sua rigidez cadavérica, mas de resto parecia serena, vulnerável e viva.
- Ah, mo grá… - Ah, meu amor… - suspirou Andrea ao chegar em casa com Bianca e sentar-se com ela na cadeira de balanço por alguns minutos, velando-lhe o sono profundo. Depois deitou-a de lado na larga cama da Senhora e acendeu uma lamparina para que a moça não acordasse no breu, acrescentando mais cobertas sobre ela. Dona Bianca pareceu sussurrar alguma coisa que ele não entendeu, então ele apenas deu de ombros e foi tomar um banho quente para não pegar uma gripe.
Letícia Bolzon Silva; graduada em Relações Internacionais pelo Centro Universitário UNINTER e Especialista em Tradução de Inglês pela Universidade Estácio de Sá. Escritora de prosa e poesia, redatora e tradutora freelancer.
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Não precisa se explicar, só não cala essa carícia no ar, queimadura doce de bala... Deixemos para depois os erros e acertos dos heróis...
Os símbolos sibilam-nos sutis.
ResponderExcluirGK
Acho que é assim que os contos de fada funcionam...
Excluir- LBS