Ele entrou outra vez naquele lugar bagunçado, empoeirado, com portas empenadas e goteiras, sentou-se e ficou em silêncio… Também disse que algum dia a moça teria de arregaçar as mangas e limpar aquilo tudo e principalmente não deixar que ninguém depositasse lixo, para não piorar as coisas.
Depois de um tempo, foi a vez dele a convidar para seu território, o que a deixou feliz e diminuiu sua sensação de egoísmo ao se ver disposta a entrar de todo, quando na verdade de alguma forma sempre acabava só no portal sem nem entender por quê. Era algo próximo e ao mesmo tempo distante… Ela se sentia mal porque era como se uma minúscula parte de si não achasse que deveria. Tanto convidá-lo como aceitar seu convite, seu amor sem restrição nenhuma.
Aquilo precisava mudar… E antes que ela percebesse, mudou, e agora precisava continuar assim.
Aquele lugar também tinha sua tormenta, que também levaria tempo para ser arrumada, mas era aconchegante à sua maneira. O sol escaldante que aos poucos se punha como uma coberta dourada fazia com que ela usasse os óculos de sol comuns dele sobre os olhos míopes, pois os seus com grau embutido não estavam à mão. Apesar do contorno desfocado das coisas, ela o podia ouvir e sentir perto dela, feliz por se notar realmente disponível para ele como ele sempre fora para ela.
Ela o via ali, aos borrões, sentado em posição de Buda num velho e duro banco de praça, à sombra de uma grande árvore. E se via olhando diretamente para ele, para o castanho dos olhos que sabia que estava lá. Como para ter certeza de que aquilo realmente estava acontecendo, trocou o nublado do óculo escuro pela nitidez suja dos de grau por um breve instante.
E lá estavam eles, iluminados por uma bela faísca de fogo. Ela já o estava enxergando mesmo sem ver. Por fora e por dentro, pelas janelas daquela alma leve e amiga na qual na verdade já havia adentrado. E ele a via também, pelas janelinhas surradas que ela nem se lembrava de ter aberto de vez, apesar das frestas.
Talvez o medo dela não fosse de ver o que os olhos dos outros mostravam, mesmo os dele, mas sim de deixar que os seus próprios deixassem algo escapar, mesmo para ele, que há tempos havia chegado tão fundo. O medo da completa intimidade e aceitação que aquela pequena parte dela sentia mesmo sem querer.
Apesar de terem entrado logo pelas portas da alma um do outro, ambos se viram conseguindo espiar pelas janelas. Ela permitindo que as suas fossem perscrutadas de mansinho e também apreciando o que via pelas dele como jamais o fez antes. Para ter um apanhado do lado de dentro e uma vez dentro, apreciar o jardim do lado de fora. O dela, por sinal, andava seco e judiado, mas tinha esperança de outra vez ver flores e árvores de fruto. Ele sabia bem disso.
- Eu estou olhando pros teus olhos… - ela disse, ainda surpresa.
- Sim, está. Eu estou aqui. E tu também olhaste para mim aquela hora, quando me falaste aquelas coisas…
- É mesmo? Eu nem tinha percebido…
Ele apenas sorriu, sem desviar o olhar. Ela ficou feliz. Algum golpe de vento deve ter aberto os trincos.
Letícia Bolzon Silva; graduada em Relações Internacionais pelo Centro Universitário UNINTER e Especialista em Tradução de Inglês pela Universidade Estácio de Sá. Escritora de prosa e poesia, redatora e tradutora freelancer.
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