quarta-feira, 11 de março de 2020

Enxerga-me pelas lentes certas

Sei que já escrevi sobre isso outras vezes no blog, mas não custa seguir gritando... Ainda mais considerando conversas que ando tendo com pessoas que tive o gosto de conhecer; uma em particular que por acaso partilha das minhas opiniões muito por viver uma situação cujo esqueleto é igualzinho ao meu: ser mulher, deficiente e ter paralisia cerebral. As nossas conversas têm me feito pensar em textos para escrever baseadas nelas, ainda que seja de vez em quando para bater em teclas que já foram discutidas... Mas nunca é tarde para abrir a boca, certo? Então...
Como já havia dito em outros textos antes de conhecer essa pessoa, uma das coisas que mais me irrita além da falta de representação específica de pessoas com a nossa deficiência, concordo om a minha amiga que parece muito comum muita gente simplesmente não ouvir o que nós deficientes temos a dizer por presumirem que nada relevante sai de nós – que não temos opiniões, que não estudamos, lemos... E por isso se espantam quando isso acontece. Quando encaramos as coisas com a naturalidade que lhes é devida de acordo com nossas possibilidades intelectuais e maturidade como pessoas. Quando nos posicionamos, especialmente com relação a nós mesmos perante os outros.
Eu, por mim mesma, já nem sei mais o que esperar ou pensar das pessoas. Especialmente quando ouço coisas do tipo “nossa, como tu és inteligente”, ligando este fator à minha deficiência de uma forma ou outra (com ela/por causa dela/apesar dela). Tenho sorte só de estar aqui e poder usar meu intelecto ao meu favor. Mas bem que eu gostaria que ele fosse elogiado mais vezes por si mesmo e sem relação à minha paralisia, seja por quem me conhece há muito tempo ou quem nunca tenha me visto antes... E como já deixei claro na escrita também, cansa ter de se provar para os outros o tempo inteiro; eu não saí da barriga da minha mãe antes do tempo e passar pelo que eu passei para perder meu tempo com isso. Já me basta o que não volta mais.
Certos aspectos não são afetados pela deficiência, seja em menor grau ou de jeito nenhum, isso depende de caso para caso. Então hoje, ainda que eu tenha muito a crescer, posso dizer que sim: sou velha e lida o bastante para manter uma conversa de cunho intelectual, portanto não me subestime. Sim, eu admito, como qualquer pessoa deveria, quando não sei opinar sobre um assunto. E sim, ainda que eu seja jovem, pode ser que tenha uma coisa ou duas para ensinar. Basta que queiram aprender.
Outro aspecto que começou a me enojar ao longo dos anos e que eu também já discuti no blog (e vi o mesmo sendo feito em outros lugares porque nunca é demais) mas que pretendo elaborar melhor aqui para quem lê meus rabiscos é a questão de sermos necessariamente vistos como exemplo de superação majoritariamente para aqueles que não possuem deficiências. Uma coisa é um de vocês se colocar no nosso lugar e entender através do nosso lugar de fala que, ainda que nossas limitações nos impeçam de seguir caminhos mais parecidos com os teus, podemos fazer o que quisermos contanto que o mundo nos respeite e colabore com a nossa independência tendo tais limitações abraçadas. Ainda mais quem adquiriu a sua deficiência com o tempo e teve que engolir o corpo novo.
Ainda que elas sejam parte de nós, outra bem diferente é sermos colocados em vitrines que, mesmo que veladamente, enfatizem mais aquilo que não podemos do que o que podemos para ter que provar para (consideradas as devidas circunstâncias de cada história, claro – estou falando de modo geral) quem não tem problemas físicos que eles podem seguir em frente, fazerem o que puderem por si mesmos. Sinto muito informar-lhes de que nenhum de nós tem a obrigação de, com as nossas deficiências, te mostrar que nós podemos ter vidas tão plenas quanto possível. Muito menos que vocês também podem. Vontade de viver não tem a ver com idade, gênero, capacidade física ou mental ou o que quer que seja! Concordo com a minha amiga novamente quando ela diz que isso nos objetifica mais ainda, nos colocando numa posição em que nos reduzimos para que os outros se sintam melhor consigo mesmos.
Assim como ela, me incomodo quando dizem que não posso me irritar com essas coisas. Passei tempo demais sem me importar; posso não dar pitaco e “militar” todos os dias, mas não significa que minhas posições não existam. Estou farta de ver os mesmos padrões se repetindo vez após vez. O que me leva a outro tópico que infelizmente vejo acontecer muito de perto e só me mostra que aqueles que conhecem melhor do que ninguém tal realidade como a minha ou a da minha amiga ou de qualquer um como nós somos nós mesmos. Nenhuma família é imune a pré-conceitos, noções equivocadas e desinformação de modo geral. E às vezes nem essas pessoas nos ouvem direito...
Refiro-me, de modo mais estreito, à noção de cura. De novo eu sinto informar: a cura não existe. Nenhuma cirurgia ou exercício ou milagre vai desfazer o que aconteceu; seja reverter uma espinha danificada ou uma lesão cerebral. Ainda que haja a possibilidade, não vai ser num estalar de dedos que qualquer um de nós vai de repente andar/voltar a andar/ouvir/seja o que for. Isso depende de outros fatores que na maioria das vezes precisam partir de nós e respeitados como tal. É fácil dizer para o outro o que ele tem de fazer quando o lugar de fala não é seu, ainda que se tenha boas intenções. Se eu não tenho o direito de opinar sobre o que qualquer um faz ou deixa de fazer, a recíproca é verdadeira e inclui como eu lido com as minhas limitações.
Sei que em casos como o meu há recursos que eu posso usar para facilitar minha vida e daqueles que me ajudam, e pretendo fazê-lo à minha maneira, no meu tempo. Mas se alguém pensa que isso é ou vai ser fácil e vai acontecer rápido, está enganado. E justamente por depender da vontade e principalmente possibilidade de cada um, se vocês pensam que ser independente e feliz tem necessariamente a ver com andar/voltar a andar, estão errados de novo. Não existe garantia nenhuma de nada, não importa o que façamos.
Então, ainda que a ideia me agrade, necessariamente andar há muito já não é mais uma obsessão minha, um objetivo final (que foi absorvida desde o começo através da minha família). Fazer exercícios quando achar que devo e me virar sozinha quanto possível em todas as esferas é mais importante. Se eu andar, tudo bem. Se eu não andar, tudo bem também. Já aceitei isso. Isso não é resignação, é respeito pelos meus próprios limites. Não aceito que ninguém jogue nada com relação à minha deficiência na minha cara. O que tem a ver com a expectativa que eu sei que existe e que eu tive também, de, caso eu chegue a andar, que o faça exatamente como todas as outras pessoas e... Não, isso também nunca vai acontecer justamente por causa das peculiaridades da minha paralisia e de como ela afetou o meu corpo. Eu tenho problemas de equilíbrio e coordenação motora que sempre estarão comigo, então não adianta esperar de mim o andar de uma rainha, embora eu me enxergue como uma. Não estou aqui para agradar a ninguém mais do que já o faço... But I digress.*

*Digress é o verbo em inglês para digressão; quando se foge do assunto principal para se referir a outro e depois voltamos a ele.

06/03/2020

2 comentários:

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