domingo, 30 de junho de 2019

História de peixe

Vou até lá todos os fins de tarde para espairecer, olhar para as ondas e os pássaros e os barcos. Porque é gostoso enterrar os pés em algum pedaço fofo de areia. Porque moro perto, então, por que não? É isso o que geralmente se faz quando se vai à praia principalmente quando não há praticamente ninguém mais ocupando a longa orla...
HAH! Quem sou eu para mentir para mim mesma? A praia é linda, o vazio é acolhedor, ver a lua subir junto com as ondas é magnífico. Mas não era apenas isso que me chamava até lá vez após vez em que eu permaneço no mais absoluto dos transes. A lua pode ser das mulheres, ser a rainha do céu escuro e das emoções. Porém jamais eu imaginava pousar os olhos em alguém que em terra pudesse ser como ela no firmamento. Que brilhasse tão lindamente sob tal luz, como prata pura. Ou do sol como uma brasa.
Como em todas as outras ocasiões, acabei chegando bem a tempo de sentar, me acomodar e logo ouvir outros passos sincopados na parte onde a água bate e volta alguns metros adiante, quando achava que ele não mais viria. O sol se pondo, e ele chegando... Pés descalços numa corrida sem pressa; ora quase sem som na areia molhada e dura, ora adicionando melodia à harmonia incessante da maré ao serem tocados pela água e espalhá-la.
A mesma cena repetida quase que com exatidão. Ele passa por mim a trote constante, sem que aparentemente repare que eu estou ali e que o sigo com os olhos até onde eles podem alcançar do outro lado, encolhida num canto e abraçando as pernas. Quando não mais consigo vê-lo, tento prestar atenção nos sons do mar, na maresia... Mas não sem que aquele homem esteja presente de alguma forma; que eu me pegue ansiando por saber seu nome e pedindo em pensamentos que na volta ele fique comigo para apreciar aquela imensidão.
O magnetismo era tamanho que eu observava as ocasionais aves em par se encontrando ou se recolhendo aos ninhos e os barcos se afastando enquanto a noite chegava pintando o horizonte de aquarela escura pelo que parecia uma eternidade. Com o coração acelerado pela agora costumeira perspectiva daquela silhueta atravessando os raios de lua devagar, desta vez num relaxado caminhar. Mesmo assim ele parecia perdido demais dentro de si para levantar os olhos para mim e eu pudesse ver suas cores; e eu tímida demais para fazer sequer uma mínima abordagem. Sendo assim, tudo o que havia naquela praia exceto o homem sabiam do que eu sentia e que aquilo já estava além do que eu conseguisse explicar.
Foi após vários dias de autonegação que consegui admitir a mim mesma a loucura de estar atraída por alguém que não conhecia a não ser pela aparência e o hábito de frequentarmos a praia na mesma hora. Isso porque durante a madrugada eu também o vejo nos meus sonhos. Posso jurar em nome de toda fé que eu gostaria de ter de verdade que ouço uma voz passar por cima do ruído marinho e da rua se referindo a mim. “Venha comigo”, ela diz, e algo me faz ter certeza de que vem daquele que atravessa a orla, embora nunca tenhamos nos falado... No fundo eu sabia que só podia ser o desejo mexendo com o meu juízo, porque era isso o que eu queria.
Naquela mesma noite, no entanto, algo mudou. Em vez de seguir seu caminho de volta para onde quer que seja e cada vez mais me fazer morrer de vontade de beijá-lo, eu o vi brevemente olhar na minha direção penteando o cabelo com os dedos. Senti meu coração parar no segundo em que o homem virou de costas para mim; o corpo recortado contra a luz branca e baça e os pés acariciando a espuma do final das cristas. Depois de alguns minutos, ele veio na minha direção de mãos nos bolsos e como se tivesse todo o tempo do mundo. E eu ali, paralisada. Mas eu não fugiria.
- Venha comigo. Sem medo. Eu juro. – Sussurrou o homem, agora de cócoras na minha frente e gesticulando como quem tem a intenção de pegar a mão da outra pessoa.
- Mas como... – eu balbuciei sem acreditar enquanto minha mão era de fato tomada e beijada mais de uma vez, com um calor e suavidade a que me falta idioma para descrever. Como se aquilo já fosse coisa nossa.
Ele olhou para mim e eu entendi por sua linguagem corporal e breve afastamento que sabia que eu estava confusa, então eu simplesmente voltei para casa. Quem ele era? Como ele sabia? O que ele quer de mim? O mesmo que eu? Era apenas passageiro? Foi o que me passou pela cabeça enquanto eu tentava seguir com o resto do dia sem o mínimo de concentração e achando que estava ficando louca. Não podia ser verdade.
- Eu te espero. – é o que me lembro de ter ouvido também, apesar de não ter memória dos lábios se movendo. Talvez fosse apenas o vento e o mar.
Deitei-me na cama com o que tinha ocorrido mais cedo ainda fresco na memória e sem conseguir deixar de pensar que foi gostoso, ainda que improvável. Era cedo porque de repente eu me senti muito, muito cansada, então logo peguei no sono... Quando estava prestes a fechar os olhos, de novo senti na cabeça como se dedos mais leves do que os da minha própria mãe ou talvez até de Maria me afagassem aqui e ali, movendo mechas de cabelo aleatórias, mas não como o frio que no inverno vinha pela fresta da janela do quarto. Era sempre quando eu dormia de costas para a porta. O gesto de alguém sentado perto o suficiente da cama para esticar o braço e me alcançar mesmo encolhida em posição fetal.
Dentro do que eu tinha certeza que era um nível de subconsciência e, portanto, de sonho, pois me lembro de ter dormido, virei-me para o outro lado com os olhos fechados para não perder o sono, mas acabei os abrindo. E lá estava aquela silhueta contra o escuro, sei lá como. Poderia ter me assustado, mas não foi o que aconteceu; talvez por já ser familiar como a praia. Eu quis me levantar, mas ele me conteve e me deitei novamente. Ficamos nos olhando por um longo tempo até que fui eu quem quebrou o lindo silêncio.
- Ei... Tu vieste. – O homem apenas concordou com a cabeça.
- Eu disse que te esperaria. E sim, é tudo verdade. Tudo o que tu achavas ser só conjetura.
- Mesmo? Como assim? A gente nunca conversou, nunca se olhou... Achei até que pudesse estar te incomodando quando me abordaste.
- Eu apenas sei. Sei do que importa. – O mais doce dos sorrisos abriu os lábios dele e eu mal consegui manter contato visual.
- Então... O que queres de mim? Estou sonhando?
- Sei o que quero. A pergunta que fica é... se queres também. Se queres o que vez ou outra te chamo a fazer. Ficar comigo de verdade e morar longe daqui. – O homem deu uma risada abafada. – A vida em si é um grande e belo sonho, meu amor.
- Tantos são enganados por propostas assim. – eu engoli em seco diante da verdade e novamente ele concordou.
- Já ouvi e testemunhei muitas dessas histórias. Mas não me incluo entre as laranjas podres. – Senti seus dedos puxarem meu rosto para cima na penumbra e logo depois o calor úmido e salgado de sua respiração contra minha mandíbula. – Basta fechar os olhos outra vez para pagar para ver.
Por incrível que pareça, realmente pensei nas minhas perspectivas antes de aceitar o convite. Tantas coisas aconteceram comigo nos últimos anos... Acho que nada mais me sobrou do que eu era antes e eu provavelmente não tinha mais nada a perder. Bem devagar, com os olhos dele, bem de perto, como a última coisa que vi, fechei os meus, adormecendo novamente.
E acordei na areia, debaixo das estrelas, por causa do barulho do mar, e com ele ao meu lado. Não sei quanto tempo se passou, nem como cheguei até ali; mas pelo sorriso do homem ele provavelmente havia me trazido. Resolvi apenas confiar no que acontecia uma vez na vida e apenas perguntei o porquê da praia novamente.
- Porque foi aqui que nos conhecemos... E porque é daqui que eu venho. – o homem murmurou, olhando com afeto para o horizonte adiante. Provavelmente viu pontos de interrogação na minha expressão, porque deu de ombros e acrescentou: - Nasci nestas areias e venho do fundo deste mar. Literalmente.
Guardei breve silêncio e, quando achei que ele fosse perguntar se eu estava duvidando, apenas pedi que me levasse para onde ele quisesse. Se fosse o oceano, tudo bem. Ainda que eu não desejasse morrer, se aquela era minha hora, pelo menos não iria sozinha. Diante do que eu testemunhava naquele momento nada parecia impossível. Ele sentou-se perto de mim na areia e me envolveu com os braços, enquanto de novo eu abaixava as pálpebras; muito por conta do conforto que vinha daquilo, do quanto parecia familiar.
E desde então as sereias cantam e invejam a felicidade de seu príncipe, de seu rei... E a minha. De todas as histórias do sal e da folha que apenas ele conhece e me conta. Da ferocidade da alegria em seu sorriso e da suavidade em seu semblante quando está comigo ou fala de mim. Da minha honra, da minha certeza, do meu amor. De tudo o que deixou de ter peso na fundura.

23/06/2019

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