sábado, 10 de agosto de 2019

Bianca e o pássaro azul - excerto

Mais um dia como qualquer outro acabando, o sol se pondo devagar lá fora e Andrea lendo à luz baça da lamparina. Algum tempo depois, fechou o livro marcando a página com um dedo e foi até a janela para abri-la e deixar um pouco de ar entrar. Quase que imediatamente, um corvo pousou no parapeito e olhou para ele com olhinhos curiosos, o que o assustou.
- Eu já sei, desgraçado! – exclamou ele num ímpeto de fúria. Usou o livro para enxotar a ave dali e se ouviu xingando debaixo da respiração. Não precisava de um lembrete assim tão óbvio.
Andrea nunca tivera medo da morte, nem do que pudesse encontrar do outro lado, se é que havia alguma coisa. O ser cíclico e temporal como o resto todo à sua volta era o mais lindo e sublime na sua espécie. Mas ele sabia do preço a pagar por tentar barganhar com aquilo que considerava mais natural. No entanto, não se arrependera e não desistiria até conseguir seu objetivo.
Sentou-se novamente na cadeira de balanço, abrindo outra vez o volume antigo sobre a perna cruzada. Quando seus olhos focaram no poema quase da sua idade e ele notou do que se tratava, riu sacudindo a cabeça diante da ironia das coisas. O texto descrevia um eu-lírico inconformado com a morte da pessoa amada desde os tempos de criança, recusando-se a sair de perto do túmulo e do cemitério, mesmo com a desaprovação do clero local. Considerando suas circunstâncias, seu estômago embrulhou-se e sentiu dores de cabeça.
Ele fechou os olhos devagar e aos poucos pegou no sono; a cabeça contra o espaldar da cadeira num ângulo agudo que lhe esticava o pescoço e o gentil vai-e-vem do corpo no empurrar do pé que estava no chão. Porém o que lhe vieram não foram sonhos agradáveis, e sim uma sucessão de memórias picotadas e borradas, mas muito vívidas, de tudo o que o levara a estar onde estava.
As visões ficaram um pouco mais nítidas conforme mostravam a passagem do tempo em que Andrea crescia e saía de casa para seguir o que sabia ser seu destino e vocação; sempre com muito trabalho e ocasionalmente com o que alguns chamariam de sorte e uma pitada de bênção daqueles que vieram antes dele... Até chegarem ao ponto crucial.
O rapaz era acolhido em suas andanças e ânsia por aprender na casa de uma anciã sem marido nem filhos que se tornaria uma das pessoas que ele mais respeitava e admirava, em termos de personalidade, trabalho e das coisas vistas e experimentadas. Logo os vizinhos passaram a referir a Andrea como seu neto adotivo, principalmente quando os viam andar de braços dados em direção ao mercado ou ao bosque. Nenhum dos dois parecia se importar de dizer o contrário.
Até que, na noite mais escura e silenciosa de que consegue se lembrar, ele rapidamente se viu contorcido na cama do quarto de hóspedes, ardido de febre entre lençóis encharcados de suor que lhe pinicavam a pele com a sensação de que estava deitado sobre uma fogueira. Entre períodos de semiconsciência, tentava consolar a mulher iluminada que chorava em sua cabeceira enquanto soprava fumaça de sálvia queimada em sua direção e lhe impunha suas mãos sábias sobre a testa e o coração. Tudo aconteceu tão inesperadamente que nem mesmo Andrea sabia explicar o que acontecia em seu corpo.
“Meu menino, meu amigo... Você ainda tem tanto a fazer, não pode ir embora agora... Resista e fique, jovem filho das flores.”
“Não chore, Senhora... Eu não partirei... Enquanto tiver a honra da sua palavra e companhia...”
“A honra é minha, rapaz. Você sabe disso. Queria poder fazer mais por você...”
Andrea teve um ataque de tosse e cuspiu um filete de sangue entre os dentes trincados pelos calafrios. Limpando a boca agora pintada de vermelho nas comissuras e na área de transição dos lábios o melhor que pôde, acariciou a mão em seu peito com um sorriso torto e um tanto triste.
“A Senhora sabe que pode. Eu nunca lhe pedi nada a não ser abrigo, comida e orientação. Então não há de negar o último querer de um moribundo, não é?”
“Qualquer coisa, Dea.”
Ele engoliu em seco. Mal sentiu quando ela lhe afastou um cacho suado do rosto.
“Uma colher daquilo que a Senhora me ensinou a fazer, mas a nunca usar. Uma já basta.”
A mulher prendeu a respiração pelo que pareceu muito tempo enquanto ele falava e mesmo depois, absorvendo a informação.
“Tem certeza, filho?”
Andrea virou a cabeça no travesseiro com um movimento brusco e uma careta de dor.
“É o único jeito.”
Mais ou menos meia hora depois, a mulher voltou para um Andrea exausto e fraco com um frasquinho minúsculo decorado de filigranas e uma colher de sopa. Cutucou-o gentilmente; o medo dissipou dentro dela quando ouviu o ronronar suave da respiração e o lento abrir de seus olhos. Apesar de ser pequenina perto de Andrea, teve força para segurá-lo meio sentado na cama e esvaziar o frasco na colher e depois nos lábios do moço. Ele tomou a poção com a gratidão, lágrimas nos olhos e a obediência de uma criança, muito embora aquilo tivesse a textura e gosto de veneno ácido.
Sua visão ficou turva de repente, cortando para uma imagem da mesma senhora sorrindo de orelha a orelha ao vê-lo em pé novamente, ainda que com um grau de preocupação na expressão. Cortou novamente mostrando-lhe o bater de asas de um tordo marrom para a escuridão do bosque e outra vez para sua mentora afagando seu rosto e a barba por fazer, a mão descansando na gola da camisa enquanto conversavam à mesa... E virando devagar para seu pescoço. Ele acordou sobressaltado e sem ar, como se o houvessem estrangulado; a última coisa que se recorda de ter visto era o rosto de Dona Bianca por detrás de mechas de cabelo.

10/08/2019

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