terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Passageira

Andando numa tarde de sol pelo centro para cumprir afazeres comuns a qualquer pessoa adulta que mora sozinha, estava prestes a passar pela calçada de uma das agências bancárias. Como de costume, a um canto perto da porta estava postado um vendedor de flores. Um vendedor de rosas de todas as cores, com seus graciosos buquês colocados juntos como crianças num caixote de madeira.

Sem diminuir o passo, mas abaixando-se um pouco para olhar mais de perto, notou as rosas vermelhas e amarelas, que estavam mais à vista. Sorriu para si mesma e, enquanto seguia adiante, exclamou:

- Ah, como estão bonitas!

Apesar de detestar sair de casa por obrigação, o dia estava bonito e lhe agradou ver a vida na rua. Fez com que se sentisse pelo menos um pouco como alguém que sempre fez parte de tudo aquilo. De vez em quando parava para observar algo que lhe chamasse a atenção – fosse aquilo a vitrine de uma loja ou o modo como os raios solares batiam nas folhas das árvores.
Fez o que era necessário e, ao fazer o caminho de volta prestando atenção no som dos próprios passos, foi surpreendida quando piscou e de repente um buquê de flores frescas foi colocado em suas mãos. Foi tudo tão rápido que nem lhe deu tempo de agradecer direito ou de ao menos olhar para o homem.

- Cor-de-rosa para você. – ouviu o homem murmurar. Tudo o que conseguiu dizer foi um “Oh! São lindas” em direção às próprias rosas geladas, úmidas e unidas por algumas páginas de jornal, com gotículas de água nas pétalas que lembravam orvalho. Esperava que o sujeito tivesse subentendido que o gesto havia lhe agradado, principalmente por nunca ter acontecido até então.

Enquanto andava reparava na carga inesperada... Estavam no pico da beleza, de uma cor relativamente viva, mas ainda assim suave. Manejou a posição para que o jornal não se despedaçasse e viu os espinhos grandes ao longo dos caules compridos. Um lembrete de que as coisas mais belas são as que devem ser tratadas com ainda mais cuidado.

Voltou para casa desejando ter um vaso apropriado para situações como essa, mas teve de improvisar com uma velha jarra arredondada. Sentiu dó de ter que cortar algumas das folhas para que coubessem no vidro tosco que foi depositado sobre a mesa de centro da sala. Por vários minutos viu-se sentada no sofá com os olhos vidrados nas rosas como costumava acontecer quando a luz acabava e tinha que acender velas. Talvez pela beleza daquilo e das chamas em si; talvez para perguntar-se até quando o encantamento duraria.

Levantou-se pensando em fazer uma xícara de chá quando algo que não saberia explicar (talvez um instinto) fez com que olhasse novamente para as rosas com a afeição de uma amiga e saísse porta afora novamente – a princípio sem destino certo. Iria onde suas pernas quisessem.

Foi quando parou um instante para se situar e viu-se diante da imensidão de pedra da igreja em estilo gótico que há muito não frequentava por já não ser mais religiosa de forma alguma. Não era hora de missa e a porta entreaberta em tom de vinho dava a impressão de ser uma bocarra em direção ao vazio; tanto o vácuo de um buraco negro como ao vazio do próprio lugar àquela hora, que permanece em espera e não é exatamente convidativo para muitos. Mas, ao apurar o ouvido, ouviu mais do que silêncio vindo dali. Inclusive algumas pareciam ter notado o mesmo que ela, embora não com a mesma atenção.

Bater de botinas no piso frio de mármore, como que marcando um compasso. Cantarolar suave, bem baixinho, às vezes acompanhado por outras vozes, masculinas e femininas. O eco do dedilhar de um violão, algumas palmas sincopadas. Tudo parecia se encaixar perfeitamente a ponto de fazê-la sorrir quase sem querer. Antes que percebesse, entrava vagarosamente na igreja praticamente vazia tentando fazer o mínimo de ruído.

Escolheu um dos bancos mais ao fundo do mesmo lado esquerdo em que aquelas pessoas se encontravam estando mais para o meio, perto do altar. Ela já havia estado ali duas vezes em horas ensolaradas – não exatamente por vontade própria... Outra vez a igreja parecia diferente durante o dia por causa da luz natural que atravessava os vitrais no teto e partes altas das paredes. Mas não apenas por isso.

Seriam as vozes, a música? Seria o jeito bonito como aquilo quebrava a morte da quietude de templo, a emoção na expressão do rosto daquelas pessoas que não pareciam da cidade e cantavam algum clássico do gospel? Seria a graciosidade de como as mulheres do grupo circulavam perto do altar para esticar as pernas e do reflexo de um vitral amarelo e vermelho manchando o cabelo castanho de quem tocava o violão? Seria a sensação de que a igreja estava mais leve e radiante? Até mesmo a Madona que dava nome ao lugar parecia olhar com ternura para eles de onde estava.

Ela gostou de perceber que estavam tão concentrados na canção, na arquitetura imponente e uns nos outros que não notavam que havia mais alguém ali. Pela primeira vez, não sentia como se estivesse invadindo algo. A certo ponto, chegou a fechar os olhos e deixar-se absorver pelo que ouvia durante o que pareceu uma eternidade em que a música mudava, ficando mais intensa, mas a atmosfera era a mesma. Era de espantar que o padre não tivesse vindo perguntar de onde aquilo vinha – devia estar em algum canto da casa paroquial, escutando...

Apesar da sua falta de crença atual, a moça nunca tinha sido imune a palavras genuínas bem colocadas, por isso conseguia ver poesia mesmo em algo que por si mesmo não lhe fazia mais sentido. Foi quando se pegou cantando um refrão apaixonado junto com o violonista, como num dueto, sendo que não haviam outras harmonias acontecendo. Seus olhos ainda estavam fechados, como se ela estivesse no quarto, sozinha, onde cantava sem inibições.

O que era a última nota do último refrão dissipou-se pela igreja como um perfume e ela lentamente abriu os olhos um pouco embaçados por pequenas lágrimas. Por uns segundos a igreja estava esverdeada, mas ainda assim bonita. A primeira coisa que sua visão focada percebeu foi o cantor com o violão olhando de volta e de uma forma direta, porém muito afetuosa. Para sua própria surpresa, ela não quebrou o contato.

- Olá. Que lindo que ficou... – ele limitou-se a dizer com um sorriso tímido, remexendo no cabelo.

- Oi. Também achei. – ela respondeu.

Despediram-se e partiram para destinos diferentes (ela, de volta para casa). Assim como provavelmente ela nunca mais veria aquelas pessoas de novo ou viveria outra vez algo remotamente parecido com o que havia acontecido na igreja, a moça sabia que as rosas em sua mesa não estariam ali para sempre. Vê-las murcharem ao longo dos dias, uma pétala de cada vez, foi tão mágico quanto aquele presente que já era passado. A vida luta por si e conserva sua beleza até o grande final.

26/02/2019

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