Paul voltava de sua costumeira hora sentado na areia perto da Grande Muralha, vendo a segunda lua despontar. Entrou pela porta selada do sietch Tabr, passando pelas câmaras e pelo alambique até o fundo, de certa forma feliz que apenas quem estava de guarda o reconheceu de forma silenciosa. Notou que havia prendido a respiração ao longo do caminho apenas quando avistou a silhueta de Chani virada de costas perto da cama, dobrando algumas roupas.
“Amado...” sussurrou ela com um sorriso ao guardar a última muda de roupa.
“Chani... olá...” Paul aproximou-se, beijou-a na testa e acariciou os anéis de água que pendiam dos cabelos dela. Algo no som deles tilintando lhe aqueceu o coração por um momento.
“Tudo bem? Parece cansado, Usul. Sente-se um pouco, eu faço mais café de especiaria se você quiser.” Chani indicou a cama com a cabeça, ao que Paul usou a mão para alisar a coberta e sentou-se com um suspiro e um murmúrio afirmativo.
Permaneceu em silêncio, observando-a trazer o aparato para perto dele e agachar-se para preparar o café. A fumaça perfumada do vapor era como a de uma poção, envolvendo o rosto de Chani. Aceitou a xícara com mãos trêmulas e frias que a moça acabou por segurar e preveni-lo de derramar o líquido.
Paul bebeu devagar, olhando de quando em quando para a amante por cima da borda da xícara. Deixou-a de lado para acomodar-se melhor sentado na cama. Chani tomou o gesto por um convite e postou-se de pé de frente para Paul, roçando os dedos pelo cabelo dele. Em resposta, Paul encostou a cabeça no estômago de Chani, os braços envolvendo a cintura.
Depois de algum tempo ela moveu as mãos para desfazer o traje-destilador de Paul. Ele não fez objeção e, em troca, despiu-a também, antes de deitarem-se no catre bem perto um do outro. Ficaram assim por um tempo, piscando devagar, até que Chani franziu a testa no escuro.
Era um desses dias em que Paul mais parecia preocupado e deprimido – ela conseguia notar o que ele escondia bem de Stilgar, dos guardas, soldados e principalmente Irulan. Isso de certa forma a fez lembrar do que Jessica havia dito sobre às vezes concubinas serem mais esposas de seus homens do que as mulheres com quem eles eram legalmente casados.
“Usul... Conte-me uma história. Uma do lugar onde você nasceu.” Embora gostasse de ouvi-las, às vezes, como naquela noite, Chani incitava Paul a falar apenas para tentar distraí-lo de seus pensamentos nebulosos. Mas sempre as ouvia com bastante atenção, porque Paul ter tido acesso a tanta água nunca deixava de intrigar Chani.
Paul acabou por contar sobre um dia em que Caladan foi varrido por um furacão tão forte que até mesmo o palácio Atreides pareceu tremer de medo. Havia começado de tardinha com uma tempestade que se alargou por toda a madrugada; os sons e fachos de luz vindo dos raios mantiveram o pequeno Paul desperto e sentado em sua cama. Ele olhava para os janelões de vidro com um misto de horror e fascinação que nunca antes havia experimentado.
No dia seguinte, Paul fez questão de acompanhar o senhor seu pai Duque Leto em visitas ao redor do planeta para avaliar os estragos e falar com as pessoas. É claro que Paul observava seu pai e como a população reagia a ele e à ajuda que lhes era fornecida o mais rápido possível. Em troca, gratidão era expressa com feroz lealdade à casa Atreides.
Mas naquele momento, o que mais motivava Paul a estar em uma das vilas ao sul de Caladan era explorar as áreas de natureza danificadas pela tempestade; as pedras batidas pelo mar violento, árvores partidas por raios ou entortadas pelo vento ancoradas em terra úmida e revirada… Bem como, talvez, a perspectiva de brincar por um momento com alguma criança local.
A vida de uma criança nascida de uma família nobre tendia a ser muito solitária, e mesmo Paul não conseguia se enganar de que não estava entre os incluídos. Seus dias eram ocupados por aprendizados com o pai em termos de governança, lições a nível mentat e prática Bene Gesserit desde que consegue se lembrar. Se pensasse bem a respeito, quase não sobrava tempo de interagir com os filhos das Grandes Casas - muito menos com os sem sangue azul.
Usando linguagem de batalha, pediu permissão para sua mãe para se juntar a um dos meninos vindos de uma casa próxima e caminhar até a charneca mais adiante. Jessica sinalizou por cima do braço do Duque que Paul podia brincar, desde que não fosse muito longe e, se necessário, contatasse Tufhir Hawatt para buscá-lo quando todos estivessem prestes a ir embora.
Como aquilo aconteceu há muito tempo, Paul não consegue mais se lembrar do nome do menino da charneca. Porém, algo que permaneceu em sua memória foi a de que fora tratado por ele como uma criança igual a qualquer outra, ainda que com o respeito normal esperado de quem vive em sociedade. Paul e o quase desconhecido engataram conversas sobre todo tipo de coisa, e andavam aparentemente sem destino.
Paul não esperava desenvolver uma amizade muito profunda com o menino, porém mesmo assim sentiu-se tocado pela aparente ingenuidade e genuína curiosidade sobre a vida de Paul como membro de uma Grande Casa e herdeiro ducal. Perguntou sobre o palácio, outras pessoas da corte, assim como os privilégios e restrições de alguém daquela posição. Paul tentou responder a tudo com educação e parcimônia, e, a certo ponto, por conta do jeito um pouco diferente e triste com que o menino o olhou, imaginou se não havia algo de muito solitário naquele jeito de viver.
De qualquer forma, com Paul tirando vantagem de seu treinamento como futuro duque mentat, ambos meninos compartilharam pequenas histórias, piadas que faziam a barriga doer e brincadeiras de que nenhum dos dois havia ouvido falar. Paul recordava com carinho de que tinha se divertido muito, e que tinha ficado um pouco chateado quando ouviu o companheiro dizer que tinha de voltar para casa.
Antes de ir, Paul pediu encarecidamente que o quase amigo voltasse por um outro caminho, sem passar pela comitiva do duque. Assim, não teria de contar aos outros onde Paul estava, já que estaria sozinho. A princípio o menino ficou com medo de represálias tanto do duque quanto de seus próprios pais. Porém, Paul ainda insistiu um pouco e assegurou que nada de ruim aconteceria. Se fosse o caso, assumiria qualquer responsabilidade por tudo, incluindo castigos… E assim foi.
Não que Paul tivesse intenções maliciosas naquela desobediência, mas ele sabia que desapontar o duque de vez em quando parecia ser o certo a fazer para que conhecesse coisas novas e se sentisse mais próximo dos outros. Já que estava sendo preparado para o ducado, deveria conhecer seu planeta e seu povo.
“Assim como você fez quando chegou aqui, não é?” perguntou Chani contra o peito de Paul, com um sorriso na voz.
“Exatamente, Sihaya.” sussurrou Paul, levemente surpreso com a interrupção depois de tanto tempo. “Fiquei ainda mais preocupado com isso depois que meu pai foi morto e tive de vir para o meio do deserto. Sem um povo, um líder vale muito pouco. Mesmo na época da Terra houveram conquistadores que se preocupavam com o povo a ponto de assimilá-lo e compreendê-lo antes de tomar qualquer outra atitude.”
Paul trocou alguns beijos com a amante antes de retomar a história. Sua intenção era a um só tempo demonstrar carinho para com ela e tentar não pensar tanto no jihad que se formava, lhe causando cada vez mais apreensão.
Depois que a outra criança foi embora, Paul decidiu caminhar ainda mais um pouco para apreciar a vista e outros detalhes do que estava à sua volta. Seu caminho era guiado pelos sons das aves e do vento nas árvores, assim como das fontes de água. Sem contar as mudanças na luz do sol e na sensação do terreno sob suas botas. Continuou mais um pouco até se sentir feliz com o que via.
O resultado da exploração de Paul era um lugar lindo. A maior parte era de grama lisa e bem verdinha, não muito alta, quase como se pessoas vivessem ali e a cortassem regularmente. Ficava na mesma altura da charneca de onde, anos depois, tinha visto a nave de Duncan Idaho partir para Arrakis, e também tinha certa vista para o mar vários metros abaixo. O que diferenciava um ponto do outro era a presença um pouco maior de árvores e por estarem em lados diferentes da mesma montanha.
As árvores eram um pouco esparsas e distantes umas das outras, porém possuíam copas altas, galhos compridos e troncos largos. A atmosfera era de paz e silêncio, com apenas o vento calmo e os sons da noite que se aproximava. O céu limpíssimo como se nada tivesse acontecido, mesmo depois de tantas horas seguidas de chuva. O verde da grama convidativo a uma carícia nas solas dos pés. Paul se deixou ficar e fazer parte dali, e a paz que sentiu parecia quase igual, talvez melhor, que muitos de seus treinos em meditação prana bindu - exceto pelo aspecto de sobrevivência e o transe.
Apesar da curiosidade em relação ao quê exatamente seria grama e lhe parecer absurdo que aparentemente o povo de Caladan não precisa usar trajes destiladores, Chani não disse nada e apenas meneou a cabeça, incentivando Paul a falar mais.
“Foi esse o dia em que eu decidi tornar aquele lugar uma espécie de refúgio secreto onde eu não precisava ser herdeiro do duque, nem filho de ninguém, e podia pensar, descansar. Quase como os templos e coisas do tipo que os Arrakianos vêm erguendo em nome do Muad’Dib desde que o jihad se iniciou. Só que apenas eu sabia dele… Até hoje. Agora você também sabe, Chani.”
Chani de repente se sentiu surpresa, mas ao mesmo tempo feliz e honrada de ser a pessoa com quem Usul escolhia dividir essa parte de sua vida. Também se sentia contente em imaginar que Paul possa ter tido um lugar assim para se desligar da turbulência de ser quem era, e passou a torcer para que talvez um dia o deserto pudesse dar a Paul uma experiência similar. Foi o que revelou a ele entre um beijo e outro.
“Alguma vez você já viajou para fora de Arrakis?” perguntou Paul.
“Usul sabe que não! Conheço muito pouco do meu próprio planeta fora do sietch Tabr, para falar a verdade. Meu tio Stilgar já havia me convidado para acompanhá-lo em algumas viagens… Mas sempre havia algo para fazer por aqui. O que passei a conhecer foi principalmente a serviço do Muad’Dib.”
Paul fez que sim com a cabeça e fechou os olhos por um momento para focar os pensamentos… Até que teve uma ideia que fez seu coração disparar e induzir uma risada de prazer.
“Quer saber de uma coisa? Vou viajar para Caladan. Se Sihaya quiser vir comigo, posso te mostrar tudo o que conheço. A vila da história que contei, o palácio onde nasci, as montanhas, o pasto, o mar, as árvores e, principalmente, o meu santuário especial. Você merece ver essas belezas e sentir essa paz.”
Incrédula, Chani rolou por cima de Paul no catre e estendeu o braço para alimentar uma lamparina que estava próxima.
“Está louco, Usul! E a Reverenda Madre? E os soldados? E os afazeres da corte? O Muad’Dib não pode sair fazendo essas viagens assim, de uma hora para outra, sem planejamento nem segurança.” exclamou Chani, alarmada. A expressão de Paul era leve e, ainda assim, resoluta. Isso parecia deixar Chani até mais ansiosa.
O sorriso de Paul se alargou e Chani viu uma faísca passar pelos olhos dele.
“O Muad’Dib pode. O Imperador pode. Eu sou ambos, então simplesmente vou. O conde que hoje comanda Caladan me deve favores, quero realizar reuniões com aliados próximos… Os motivos são o que menos importa, e eu não estarei lá pela minha mãe. Só importam para nós dois.”
Apesar de o império ser absurdamente vasto, nada vinha acontecendo nos planetas relevantes ultimamente que pudesse exigir a presença de Paul em apenas uma base de comando. Ele pode ter sido endeusado principalmente em Arrakis, mas essa influência havia se espalhado o bastante para que ele fosse recebido com temor e respeito em praticamente qualquer lugar.
Chani bufou, quase revirando os olhos. Paul meneou a cabeça e ergueu as sobrancelhas num certo tom de desafio.
“Está bem, está bem. Eu vou até Caladan com você, Usul. Mas temos de avisar pelo menos a Reverenda Madre Jessica, ainda que eu não goste que você pareça disposto a mentir.” disse Chani com a testa franzida.
Paul abraçou sua amante com carinho. Estava feliz por poder passar mais tempo a sós com ela. Não via a hora de mostrar a Chani o ar úmido que entra pelo nariz e o faz escorrer, o céu límpido com nuvens aqui e ali. De poder presenteá-la com roupas bonitas e de tecido térmico que seriam úteis no deserto também. De por uns dias ser apenas Paul novamente.
Quando amanheceu, Paul acordou primeiro e levantou-se para arrumar duas pequenas malas com bagagem para ele mesmo e para Chani. Pretendia que saíssem escondidos, à primeira luz do amanhecer. Ele mesmo pilotaria o ornitóptero que os levaria a Caladan, com carga leve e sem pressa. Paul colocou as malas no fundo do ornitóptero antes que Chani despertasse para o desjejum.
Chani foi acordada por beijos de Paul ao longo do pescoço. Deixou-o espalhá-los um pouco pelo ombro, clavícula e peito por um momento que pareceu durar anos. Vestiu-se e os dois foram tomar o café da manhã onde costumam se reunir os membros do sietch. Paul estava tão insistente em levantar tão cedo que Chani acabou cedendo, mesmo desconfiada de que ele estivesse tramando algo.
Aproveitando o silêncio do salão vazio e a refeição encerrada, Paul sussurrou que tinha uma surpresa e vendou os olhos dela com o lenço que carregava sobre o traje destilador. Chani começou a rir e a caçoar um pouco de Paul quando sentiu que pisava do lado de fora do sietch. Fazendo o mínimo de barulho possível, Paul carregou Chani e sentou-a no banco do ornitóptero.
“Pode abrir os olhos.” disse Paul depois de ocupar o lugar do piloto.
Chani não escondeu o espanto quando se viu dentro do ornitóptero que já estava prestes a decolar. Ainda que parte dela quisesse prostestar perante a impulsividade de Paul, nada daquilo teria muito resultado. A perspectiva de voar para longe de casa e conhecer de onde Usul havia vindo para ela venceu. Chani apenas deu de ombros com um sorriso, ansiosa para saber o que vinha pela frente.
Paul e Chani conversaram sobre assuntos de Estado ao longo do caminho, mas não apenas isso. Paul apontava e explicava sobre aquilo que conhecia conforme chegavam a outros planetas. A empolgação e as perguntas dela tiravam-lhe um grande peso do coração.
Quando finalmente chegaram a Caladan, Chani não parecia acreditar na paisagem que via pelas janelas e para-brisa.
“Isso tudo é água, Usul? E essas coisas brancas no céu, vêm de onde?”
“Esta água grande e revolta vem do mar, Sihaya.” E assim Paul explicou a ela tudo de que conseguia se lembrar sobre os oceanos, braços de água doce e a formação e função das nuvens.
“Então onde estão os criadores que fazem a chuva acontecer? Estão debaixo daquela areia branca?” Chani achou estranhíssimo e ao mesmo tempo bonito que, em Caladan, assim como na antiga Terra e em outros lugares, as pessoas sabiam que outros deuses, com o auxílio do sol (e às vezes o sol como uma divindade em si mesmo) era quem se encarregava de trazer chuva nas horas certas.
Quando Paul estacionou o ornitóptero no hangar do palácio, Chani achou estranho ver apenas alguns soldados do exército do conde responsável, bem como os funcionários que mantinham tudo funcionando. O conde e o resto da corte não vieram cumprimentá-los, nem outros dignitários de planetas próximos. Porém, era tudo intencional. Paul havia combinado com o conde de esvaziar a corte e reservar o palácio para uso exclusivo do imperador e de sua amante. O preço que o conde havia de cobrar era algo que Paul negociaria cuidadosamente depois que voltasse.
Chani não conseguiu esconder o espanto ao se ver andando sobre pedra lisa e espelhada, sentindo um ar muito mais fresco e úmido lhe bater nos cabelos. Paul instruiu algumas empregadas a ajudarem Chani a trocar de roupa por algo mais conveniente. A princípio Chani sentiu certa desconfiança daquelas pessoas que não pertenciam a nenhum sietch. Também relutou um pouco a tirar o traje destilador, por estar tão acostumada com ele que quase lhe parecia uma segunda pele. Porém logo relaxou ao perceber que as mulheres eram agradáveis e lhe tratavam com respeito.
“Este vestido lhe cai muito bem, Lady Chani.” disse uma das mulheres enquanto ajeitava os cabelos dela sobre os ombros, de um loiro que contrastava com o negro do tecido, característico da casa Atreides.
Chani sorriu ao levantar-se para ver o caimento do vestido e sorriu tanto para si mesma como em agradecimento à mulher. Por mais que sentisse certa pena de Irulan pelo modo como Paul parecia desprezá-la, por um momento lhe ocorreu que havia passado a pertencer à família de Paul, assim como ele à dela, desde o momento em que se conheceram. Tudo o que Paul queria era que Chani se sentisse acolhida. Essa conclusão fez com que ela de repente ficasse ainda mais orgulhosa de ser quem era.
Uma bebida e petiscos foram servidos no salão onde acontecem os banquetes e Paul contou sobre reuniões que entreouviu desde muito pequeno. Até que, na qualidade de herdeiro do duque, um dia foi autorizado a participar e dar opiniões. Pôde acompanhar de perto as dinâmicas e sutilezas, memorizar nomes e identificar quem era confiável - especialmente durante o processo de estabelecimento em Duna.
“Acho que consigo imaginar a situação. Todos esses homens sentados aqui em volta, discutindo um futuro que logo seria comandado pelo Muad’Dib… E de modo mais amplo do que imaginavam.” Paul tentou disfarçar uma nesga de tensão com um sorriso sem dentes. Permitiu-se relaxar e apreciar o momento quando ela lhe beijou a mão num gesto de afeto e devoção que ele sabia se referir a mais de uma coisa.
Paul e Chani andaram pelo castelo e também pela estufa simuladora de como a vida era na antiga Terra. Chani gostou tanto que começou a pensar em como poderia reproduzir alguns daqueles aspectos em seu laboratório debaixo da areia. Também gostou de ouvir sobre as flores que brotam na primavera e das abelhas que acabavam por polinizar o campo, enchendo-o de plantinhas selvagens.
“Tome cuidado com as abelhas do mesmo modo como você faz com os pássaros do deserto.” alertou Paul. Chani fez que sim de modo solene.
“Uma cesta…” disse Chani com uma expressão intrigada no rosto quando viu Paul emergir da grande cozinha carregando uma cesta no braço e um largo tecido retangular, um pouco grosso, jogado sobre o ombro.
“Uma surpresa, Sihaya.” Paul pegou Chani pela mão e foi conduzindo-a até a porta .principal do palácio, dobrando à esquerda e depois caminhando por uma trilha específica que parecia não ter fim. Ela procurou assimilar a paisagem conforme andavam, e a vista parecia vagamente familiar.
“Isso nos pés é… grama! Pinica como areia. Deveríamos colocar as botas e o traje.”
“Nada disso é preciso. O suor do corpo se dissipa no ar e volta para o céu, nas nuvens. A grama pinica um pouco, mas também refresca e massageia. Assim como a areia fofa das beiras das praias traz um conforto semelhante.”
Paul olhou em volta e encontrou uma bela árvore de tronco largo e copa alta. Espalhou a toalha que retirou da cesta a alguns palmos da raiz e descansou a cesta sobre o pano, deixando o outro pano próximo. Chani entendeu a deixa de sentar sobre a toalha depois de ver Paul fazer o mesmo. Acabou por deixar-se descansar sobre o peito e o ombro dele, como fazem em Arrakis, observando a areia em dunas afastadas.
“Aqui é bonito, Usul. Gosto de estar aqui… Com você.”
“Eu também acho lindo. Te trouxe aqui porque queria te mostrar o meu lugar preferido quando mais novo. Este é o lugar que mencionei naquela história.”
“Assim como eu te mostrei a minha duna preferida…”
“Verdade. Tinha esquecido do quanto era bom estar aqui, com o vento fresco na pele…” Paul roçou de leve um dedo sobre a clavícula de Chani, quase acompanhando a direção do vento que soprava. Ela estremeceu um pouco e ambos sorriram satisfeitos.
Paul havia providenciado um bom vinho e sanduíches para comerem à sombra da árvore, sem pressa de voltarem para casa. Chani achou bem-vindo o torpor, muito por ser similar ao da cerimônia da morte do verme e aos beijos de Paul. A certo ponto os sanduíches acabaram, a garrafa de vinho chegou à metade e ambos foram ficando cada vez mais perto um do outro.
Apesar de o vento estar ficando frio com o passar do tempo (o bastante para espantar os insetos), quanto mais se beijavam, menos necessidade sentiam de permanecerem vestidos. Acabaram por fazer amor devagarzinho, com muito afeto e quase nenhum som, mesmo sendo as únicas pessoas naquele pedaço de campo. A não ser por suas respirações, apenas as árvores cantavam como se fossem os criadores debaixo da areia.
“Não há campo mais belo que este…” sussurrou Paul ao ouvido de Chani. Ela o afastou por um momento, interrompendo o beijo. Ao olhar nos olhos dele e notar uma leve diferença em seu tom de voz, revirou os olhos.
“Você é impossível, Usul… É por isso que você diz que sou um campo a ser cultivado e coisa do tipo?” Ele fez um beiço de exagerada indignação, como uma criança ofendida, e ambos voltaram a se abraçar e acariciar. Ela não estava realmente zangada.
“Um dia este foi o meu abrigo, o meu lugar preferido, onde eu podia ficar em paz com meus pensamentos e ser apenas uma criança. E eu não deixo de amá-lo.” As palavras escorriam pelo pescoço de Chani. “Mas hoje a minha casa é Arrakis e meu abrigo é aqui, nos seus braços, Sihaya.”
Chani começou a ronronar, puxando Paul para o mais próximo de si possível. Ele pareceu entender, porque Chani teve a sensação de que Paul estava em todos os lugares, sem nunca se separar. Dali a um tempo ambos sentiram quase como se eram uma só pessoa, ainda que apenas por um instante… Mas momentos e impressões assim eram aquilo pelo qual Chani mais ansiava e dos quais mais sentia falta quando ele estava longe.
“Usul trouxe a coberta… Mas o que mais me aquece é o corpo dele.”
“Chani é minha duna, meu anjo, minha fonte de água… Meu solo úmido.”
Eles recolheram os restos da refeição para dentro da toalha depois de descansar um mipouco, vestiram-se e voltaram para o palácio. Após algumas horas, a noite caiu e resolveram ir dormir no quarto de Paul dos tempos de criança. Paul seguiu contando sobre os duques de antigamente, sobre como seu pai Leto era quando estava no comando, seguindo os passos do pai dele também.
Paul tinha certo contato com os filhos das outras Grandes Casas por conta da aliança, mas não era tão frequente e natural como ele gostaria. Não dava para chamar aquilo de amizade; no fundo tudo era um tanto formal, com certo distanciamento, e sentia falta de mais companhias. Por isso Paul acabava passando a maior parte do tempo estudando e treinando com Lady Jessica e Gurney Halleck.
Contou também sobre o que havia aprendido sobre a guerra com as máquinas que originou o Império… E como era bom lavar o rosto com água fria depois de um dia muito quente. Paul resolveu vestir um pijama antes de se deitarem em definitivo, e também passou pela cozinha para buscar um copo de água e encher a jarra da mesa de cabeceira, que serviria para encher a bacia do conjunto na manhã seguinte.
Chani observava em silêncio o reflexo da água no rosto de Paul e deu graças a Shai-hulud. Ele bebeu um gole antes de deitar-se e ofereceu a ela também. A serenidade naqueles olhos fez com que ela aceitasse, mas bebesse bem devagar como ele, pela falta de costume.
“Será que Usul me amaria se eu morasse com ele em Caladan e acabasse gorda de água como ele era antigamente?”
“Claro que sim, Sihaya. Pelo resto da vida, Sihaya sabe.”
Paul percebeu que Chani ainda olhava dele para o copo e do copo para ele. Acabou revelando que beber um pouco de água antes de dormir costumava lhe dar um sono mais tranquilo e ajudava a adormecer outra vez depois dos pesadelos.
“A água consegue fazer isso, Usul?” De repente o presente de Shai-hulud ficou ainda mais valioso para Chani, e Paul de certa forma a amava ainda mais por isso.
“Costumava funcionar para mim, Sihaya. Mas… Eu não precisava dela quando sonhava com você. Você sempre foi a melhor parte desses sonhos.” Paul puxou Chani pela cintura até seus corpos se moldarem, e ambos se deixaram relaxar até pegarem no sono.
“Ainda que o Muad’Dib nunca houvesse existido e você fosse apenas Usul… Eu o amaria mesmo assim.” Disse Chani pouco antes de fechar os olhos. Quão forte e sábia era Sihaya! Uma lágrima tocou o travesseiro de Paul, e ele adormeceu.
05/08/2023
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