O
passado tem dessas coisas. Prega peças aleatórias para nos fazer lembrar quem
fomos um dia... E do quanto esse eu de outro tempo ainda resta em nós – para o
bem ou para o mal.
Age de forma repentina, mas de um jeito que torna rememorar o detalhe grande ou pequeno a coisa mais fácil do mundo. Repete uma mesma informação com outra imagem como uma forma de provocação e até mesmo de teste.
Pode ser que ele nos pegue num passeio de carro pelo centro da cidade. Já é noite, então nós e nossa companhia decidimos comer um cachorro-quente da van estacionada na rua principal. A outra pessoa fica de sair para pedir e pegar a comida, e não nos importamos de esperar.
Do banco da frente, a gente espera. Espera e, como é de nosso feitio, observa. A luz forte que ilumina a vitrine apesar de a loja estar fechada há várias horas. As pessoas que passam, seja naquela calçada ou querendo atravessar para o outro lado. As que perdem definição ao passarem, por conta daquela luz. As crianças e o que elas parecem estar querendo.
E inesperadamente, no espaço de apenas alguns segundos, o passado se mostra. Ainda estamos sozinhos no carro, então não há como evitar o confronto nem fingir que aquilo nunca aconteceu. O passado decide assumir nome e sobrenome e no fazer duvidar dos nossos próprios olhos por um momento. Mas, antes de ser possível ver o rosto, já sabemos de quem se trata.
Bem diante de nós, ele se mostra e acontece outra vez. Surge perto o bastante para que possamos discernir seu tamanho e seus traços primários, por tecnicamente ter se virado na direção em que estamos... E é justamente isso que nos surpreende. Tantos anos depois, aquele instante mais parece uma provocação, e é quase difícil de acreditar, por ser tão improvável. Mas a vida confirma.
“Será que... Ah, é sim.”
Exatamente como na memória e na experiência o passado olha para onde estamos, mas não para nós. Olha logo acima da nossa cabeça, depois para o outro lado, com o mesmo olhar focado e ao mesmo tempo perdido em si mesmo... E passa, atravessando a rua em passo firme. Um estar dentro de um carro escuro e o outro na rua não altera quase nada.
Esse passado que nunca nos amou, e que sempre soubemos que nunca nos amaria. Fizemos as pazes com isso desde o começo. Esse passado nos machucou muito, é verdade. Mas aquilo foi há muito tempo. A outra parte da surpresa é percebermos que não sentimos mágoa do que vemos. Apenas lembramos o quanto aquilo foi importante, e não conseguimos não pensar no que teríamos feito.
Mas, felizmente, o pensamento não permanece. Assim como o passado, ele vem e passa... Naquele rosto que achávamos que tínhamos esquecido, mas que se parecia exatamente como naquela época. Um segundo ou dois, apenas, mas aconteceu. E lembramos. E sentimos. Sabendo que até aquele fragmento do passado não é mais o mesmo, ainda pudemos reconhecê-lo, como que em câmera lenta.
Não muito depois, a parceria volta com os cachorros-quentes. Estão gostosos. A vida segue, como ele seguiu. E, por incrível que pareça, não contamos sobre o que vimos para a pessoa ao lado. Por mais natural e até automático que seja fazer isso, achamos melhor guardarmos aquilo conosco. Um fragmento banal se torna algo raro ao nosso feitio... Uma tristeza particular.
21/04/2025